A Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) homenageia a pintora Paula Rego, o seu olhar “sólido e livre”, sempre atento a realidades sociais e políticas, numa declaração de luto, publicada no seu próprio ‘site’.

“Observadora e participante do seu tempo, criadora de histórias nunca fechadas, fez da narrativa pictórica um modo contemporâneo de pensar, de colocar questões e hipóteses”, lê-se no texto assinado pela professora Isabel Sabino, catedrática de Pintura da FABUL, que a presidência da faculdade subscreve como “evocativo” da vida e da obra da artista.

Paula Rego, que morreu na passada quarta-feira, em Londres, onde residia, aos 87 anos, criou em 2016 um prémio para estudantes da FBAUL, mais tarde alargado a outros alunos de instituições portuguesas de arte, abrindo-lhes as portas da Casa das Histórias para exporem, e incluindo depois as obras vencedoras na sua própria coleção.

“Estamos, assim, de luto”, escreve Isabel Sabino, numa declaração subscrita pela FBAUL.

“São conhecidas imagens do ‘atelier’ londrino onde Paula Rego trabalhava há décadas, com as coisas que ali se animavam sob o seu olhar, sopro e mãos: cavaletes, mesas e bancos, estrados, materiais, sobretudo obras concluídas e em curso, e ainda aqueles inesperados bonecos de pano, por vezes algo monstruosos, que ela fazia e que lhe serviam de modelo. (…) Tudo isso fica, agora, como que numa espera sombria”, lê-se nos primeiros parágrafos do texto.

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Paula Rego dava atenção às “realidades nacionais, sociais e políticas”, prossegue o ensaio da professora da FBAUL, enumerando características desde uma fase inicial do trabalho da artista, que canalizava “a liberdade do seu discurso”, a expressões mais tardias, marcadas pela “força telúrica do desenho e da cor, em registos de figuração muito livre e descontraída”, a que se associa depois “a necessidade narrativa”.

“Já não se tratava de fundir o pessoal com o local naquilo que, muito estritamente, poderia aliar a estranheza ao exotismo em pinturas de forte presença plástica. Quando a representação coreografou temas da condição das mulheres e, um após outro, os seus espaços, temas e problemas (como depois o aborto e excisão), Paula [Rego] veio engendrar narrativas com fundo e sentido indiscutivelmente universal: humano, emocional, crítico, cómico por vezes, político (…) em boa pintura, bem arrancada, quase apolínea, de excelente sentido cromático, paradigma específico resistente”, sublinha o texto da FBAUL.

As diferentes vertentes desta figuração, sempre ricas “em temáticas da realidade social e da cultura”, encontram expressão em “criaturas híbridas informes e viscerais”, mas também “em retratos reconhecíveis” da família, da assistente, de amigos, assim como do Presidente da República Jorge Sampaio, de quem fez o retrato oficial.

Trata-se de uma figuração que leva a “situações mais alegóricas e críticas”, como no caso da pintura “Primeira Missa no Brasil” (1993), uma obra que tem em primeiro plano uma jovem grávida, abandonada no seu leito, destacada por Isabel Sabino neste contexto, e de como avançou por “temas associados a uma paradoxal fé católica”, como aconteceu nos oito quadros do “Ciclo da Vida da Virgem Maria”, para a Capela do Palécio de Belém, resultantes de encomenda do Presidente Jorge Sampaio.

Paula Rego foi sempre “observadora e participante do seu tempo”, conjugando memórias, narrativas, informação oriunda dos media e da sua própria vida, sublinha a FBAUL.

Quadros como “Salazar a Vomitar a Pátria” (1960), “Coelha Grávida a Contar aos Pais” (1981), a série sobre “O Crime do Padre Amaro” (1998-99), “Human Cargo” (2007-2008) são “apenas mais alguns casos de obras que mostram, em tempos diferentes, o génio de Paula Rego, cuja pintura absorveu o que ela viu, ouviu, leu, sentiu e pensou”.

“Obra que fala do mundo em devir, contemporânea sem qualquer dúvida, quis algum anjo que Paula Rego estivesse presente na Bienal de Veneza deste ano precisamente com a sua série ‘kafkiana'”, recorda a professora Isabel Sabino, acrescentando que “ali está, agora, sob os holofotes”, através de “um lado sombrio” da sua expressão, que a própria artista definiu como “black, black, black”.

“Dirão os factos da matéria das coisas que [Paula Rego] já não volta ao ‘atelier'”, conclui o texto da FBAUL, admitindo, porém, que a artista “ali continua, pelo meio de tudo, e em tudo o que foi fazendo”.

Nascida em Lisboa, em 26 de janeiro de 1935, fixando-se posteriormente em Londres, onde se formou, na Slade School of Art, Paula Rego recebeu, entre outras distinções, o Prémio Turner, a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada de Portugal, e a Ordem do Império Britânico.

A título póstumo, será condecorada com o Grande Colar da Ordem de Camões, anunciou na sexta-feira o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.