França, Inglaterra, Rússia e Estados Unidos da América foram algumas das paragens que serviram de porto de abrigo, ou recolha, para o magnífico espólio da coleção reunida por Calouste Sarkis Gulbenkian ao longo da sua vida.
Tendo em conta essa diversidade geográfica e as dificuldades inerentes às viagens e transporte de obras de inestimável valor, algumas em estados de conservação que exigiam maiores cuidados, urge saber como é que essa logística era realizada, sendo esse o ponto de partida de mais uma sessão do podcast Only the Best, um programa quinzenal que resulta de uma parceria entre o Museu Calouste Gulbenkian e a Rádio Observador, e que, como habitualmente, conta com o historiador Rui Ramos enquanto anfitrião e João Carvalho Dias, diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, como fiel companheiro em mais uma viagem pela extraordinária vida de Gulbenkian.
Itinerários diversos
Em sessões anteriores, como recorda Rui Ramos, “falámos na casa de Paris, na avenida de Iéna, onde muitas das obras desta coleção estiveram guardadas durante a vida de Gulbenkian, mas também das suas aquisições. Hoje centramos o debate em algo inerente à coleção – no caso o seu transporte -, focando-nos na última grande viagem do referido espólio tendo Lisboa e o Museu Calouste Gulbenkian como destino”.
Algumas das primeiras questões que se levantam, continua Rui Ramos, “é a questão da conservação de peças, por vezes, relativamente frágeis, mas também as questões legais, uma vez que se trata de objetos considerados como tesouros, o que levantou problemas complicados de licenças de exportação e direitos alfandegários”, enumera. No entanto, e antes de a capital portuguesa ser o destino final, “as peças reunidas já tinham percorrido alguns pontos do globo, como o foram as pinturas adquiridas ao Museu do Hermitage, na Rússia. Mas, que por outras paragens viajaram as obras adquiridas por Calouste”, pergunta o anfitrião do podcast Only the Best?
Podemos dizer que “o espólio de Gulbenkian é uma coleção viajada, em sintonia com o seu proprietário”, responde João Carvalho Dias. “Além das viagens das peças, entre os lugares de origem e dos seus múltiplos proprietários até chegarem ao acervo Gulbenkian, lembremos que o início da coleção coincide com o estabelecimento de Gulbenkian em Londres, a partir de 1898, mais particularmente na casa de Hyde Park Gardens. Depois, vem Paris. Primeiro em 1906, em Quai d’Orsay, seguindo-se, a partir de 1927, a avenue d’Iéna”, contextualiza o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Depois, “os empréstimos da coleção de pintura à National Gallery de Londres e da coleção de antiguidades egípcias, ao British Museum, em 1936, implicaram novas viagens”, afirma Carvalho Dias, “não esquecendo que, durante a II Grande Guerra, algumas obras são armazenadas em segurança no País de Gales. Já após o conflito, a coleção egípcia faz uma viagem transatlântica até ser depositada na National Gallery de Washington, em 1948”, acrescenta.
Mas as viagens não ficam por aqui, pois, em 1950, “as pinturas viajaram, por navio, de Londres para os Estados Unidos da América, e, já depois da morte de Gulbenkian em 1955, a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) recentemente criada (1956), começou a reunir a coleção em Portugal”, refere. “As peças viajam de Paris e de Washington, e são recebidas no Palácio dos Marqueses de Pombal, em Oeiras, adquirido pela FCG para as acolher, enquanto o Museu era projetado e construído”, refere João Carvalho Dias.
Mais tarde, “em 1961, a FCG promove exposições-ensaio para a instalação das peças no Museu Nacional de Arte Antiga, e, três anos depois, no Museu Nacional Soares dos Reis, e, entre 1965 e 1969, no próprio Palácio dos Marqueses de Pombal. A saga terminaria a “2 de outubro de 1969, data em que é inaugurado o Museu Calouste Gulbenkian e onde a coleção é finalmente reunida”.
Repartições e obstáculos legais
O carinho de Gulbenkian pelas suas obras era de tal ordem intenso que, “numa carta escrita em 1947 e dirigida ao diretor da National Gallery de Londres, Calouste confessa que “as minhas obras de arte são os meus amigos e nunca me pude habituar à ideia da sua dispersão”, partilha Rui Ramos.
Essa ideia de afastamento resulta do facto de, “antes de virem para Lisboa, as peças já não estarem todas juntas no número 51 da avenida d’Iéna, onde Gulbenkian reunira muitas delas desde 1927”, acrescenta o anfitrião do podcast Only the Best, sendo que algumas dessas obras “tinham estado expostas no palacete, outras reunidas nas caves, e outras ainda estavam em depósito em antiquários e em museus, ou emprestadas a exposições temporárias”.
João Carvalho Dias confirma esse estado “de coleção repartida, ainda que não pelo mundo, apesar de alguns dos objetos, individualmente, tenham feito viagens muito diversificadas em função das diferentes geografias de proveniência”. Exemplo disso são “as lacas e as estampas do Japão, as porcelanas da China, os tapetes e os manuscritos do Irão à Índia, os têxteis e as cerâmicas do império otomano, as antiguidades egípcias e da Mesopotâmia ou algumas obras da Grécia Antiga”, enumera, e, também por isso, o espólio cultural reunido por Gulbenkian seja sinónimo de “um acervo multicultural de grande riqueza artística e inestimável valor histórico, e, por isso, fazer uma visita ao museu é como viajar pela história universal”.
No entanto, quando Gulbenkian morre, em 1955, surgiram alguns problemas “face à saída das peças, em especial as que estavam em Paris, no palacete da avenida d’Iéna”, refere Rui Ramos, ainda que, pelo contrário, “as obras que estavam na National Gallery of Art, em Washington, não tenham representado grandes problemas”.
A Fundação Calouste Gulbenkian teve mesmo de enfrentar «difíceis negociações legais e diplomáticas, porque havia em França quem resistisse a perder a coleção, requerendo a intervenção do então presidente da república francesa, o general De Gaulle», adianta o anfitrião do podcast Only the Best. “Qual seria a base legal dessa resistência e como foi vencida?”, questiona Rui Ramos.
“Essa resistência é compreensível, pois, em alguns casos, falamos de obras compendiais”, sublinha João Carvalho Dias. Daí que, inicialmente, “a exportação de setenta peças foi recusada por se revestirem, de acordo com a lei francesa de 1941, de interesse nacional. Todavia, a diplomacia portuguesa e a intervenção de André Malraux, ministro da Cultura à época, desbloquearam esses obstáculos e todas as peças viajaram para Portugal”.
Logística de transporte e acolhimento
Além das dificuldades jurídicas, a logística de transportar as obras foi outro dos obstáculos enfrentados por Calouste Gulbenkian. Perante isso, Rui Ramos, deixa algumas perguntas: “Qual o meio utilizado? Como é que se garantiu a coleção contra possíveis danos? Houve a intervenção de empresas especializadas?”
Para João Carvalho Dias, a questão da “embalagem foi fundamental para assegurar a integridade, bem-estar e segurança das obras durante a viagem, e, para tal, “a FCG contratou a empresa Chenue, que era a preferida de Gulbenkian”. Quanto aos meios de transporte, “o camião e o comboio foram os utilizados”, revela, “existindo mesmo fotografias em arquivo que registam os momentos da embalagem em Paris, o transporte, e a desembalagem em Portugal. São documentos históricos que revelam os cuidados que rodearam toda a operação, já que Gulbenkian era muito exigente em todas as questões que envolviam o bem-estar e a conservação das suas obras de arte e a FCG deu continuidade a esses critérios de exigência”, garante o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Mas os desafios não ficaram por aqui, pois, “quando as peças começaram a chegar a Portugal, o atual edifício do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa, não estava pronto (só foi inaugurado em 1969), tendo sido preciso arranjar um alojamento provisório”, avança o anfitrião do podcast Only the Best.
Perante isso, “a FCG comprou o já referido Palácio dos Marqueses de Pombal, em Oeiras, onde a coleção esteve entre 1965 e 1969, e, onde, pelas fotografias, quase parece que se reproduziu em algumas salas o ambiente de domicílio da avenida d’Iéna”, refere o historiador. Além disso, foram também realizadas exposições temporárias, como salientamos anteriormente, no Museu de Arte Antiga, em Lisboa, e no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto”, acrescenta.
“Essas exposições temporárias fazem parte do muito diversificado itinerário da coleção”, afirma Carvalho Dias, “tendo sido momentos de ensaio de soluções museográficas para o futuro Museu Calouste Gulbenkian, e onde foram testados modelos de vitrinas, estrados para os tapetes e a iluminação”, mas também se assumiram como “magníficas oportunidades para mostrar a coleção ao público. No fundo um conjunto de obras de excelência, que podia rivalizar com museus de renome internacional”, congratula-se o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.
Outros pontos importantes realizados durante esse processo foram “a inventariação das peças, o zelo pela sua condição física e o seu estudo, que, desde o início, foram preocupações das primeiras equipas do Museu Calouste Gulbenkian, em que se destaca a Dr.ª Maria Teresa Gomes Ferreira, recentemente falecida, que viria a ser diretora e cuja obra importa enaltecer”.
Sobreviver à intempérie
Depois da coleção já devidamente instalada em Lisboa, teve de enfrentar mais um desafio, no caso as grandes inundações de novembro de 1967. “O que foi feito e como sobreviveram as obras?”, pergunta Rui Ramos.
Esse é outro “momento marcante da vida da coleção e que, de certo modo, condicionou o discurso museográfico do futuro Museu, que abriria dois anos depois”, lembra João Carvalho Dias.
“Muitas obras foram afetadas na medida em que as inundações atingiram as caves do Palácio dos Marqueses de Pombal, onde grande parte das obras se encontravam depositadas”, lamenta o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian. “Obviamente que as obras em papel foram as mais difíceis de recuperar, mas a pronta resposta dada pelos responsáveis da FCG, nomeadamente pelo então presidente, Doutor Azeredo Perdigão, equipa de técnicos do Museu Calouste Gulbenkian, assim como conservadores, restauradores e todos os que puderam acudir ao local, foi fundamental para que muitas das obras pudessem ser recuperadas”, acrescenta. Aliás, o apoio técnico internacional e também nacional a que a FCG recorreu viria a estar na génese dos modelos de conservação preventiva hoje adotados nos museus”, aplaude Carvalho Dias.
Depois de tantas peripécias, felizmente com final feliz, despedimo-nos até daqui a 15 dias para mais uma edição do podcast Only the Best, na qual iremos falar “de outra dimensão da coleção de Calouste Gulbenkian: o seu interesse pelos têxteis preciosos, nomeadamente sob a forma de tapetes persas, em que era reputado como um grande conhecedor”, revela Rui Ramos.
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