Caraterizando-se como “pacifista”, Aleksander Krolikovski — o rosto que se vê no tweet do repórter Luis de Vega, que assina o artigo sobre este ucraniano no El País — não tem experiência militar, contudo decidiu que não ficaria fora do cenário de guerra. Durante quase um mês, a sua batalha foi dentro da morgue do Hospital Vishgorod, no norte de Kiev (Ucrânia), onde permaneceu dias “intermináveis”.

O pior era mostrar os corpos às famílias. Acabei por vê-los [cadáveres] como gente próxima de mim. Sentia a dor como eles [familiares]. Às vezes eu tinha de avisá-los: ‘Não tem cabeça’.”

Detalhou ainda que teve de andar sobre os corpos enquanto, por dentro, lhes pedia desculpas — toda a situação era “terrível”. Com o objetivo de atenuar a dor, falava com aquelas vítimas do conflito: “Conversei com os mortos. Isso ajudou-me”, referiu. Ao El País, Krolikovski deu um testemunho, descreve o próprio jornal espanhol, que vai “do mais terno sentimento de solidariedade às pinceladas mais sangrentas”.

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Passadas semanas desta experiência — e já as forças russas estão longe da capital –, Krolikovski guarda as fotografias que lá tirou com uma câmara instantânea e, escreve o El País, quando mostra as respetivas imagens, “segura-as entre os dedos como se fossem cartas”. Numa das suas primeiras fotos, aparecem, em primeiro plano, umas botas que o artista usava no seu trabalho. As “botas de sangue”, como as apelida, assemelham-se às pintadas por Vincent Van Gogh, em 1886, e os sapatos fotografados por Andy Warhol um século mais tarde. “Quem já esteve numa morgue numa zona de guerra sabe que as fotos de Krolikovski poderiam ser muito mais explícitas”, ressalva o El País.

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Graças a um curso improvisado realizado com agentes forenses ucranianos e franceses, Aleksander consegue distinguir ferimentos e falar sobre armas. “Fiquei muito impressionado com alguns dos corpos que vieram de Bucha. Vieram torturados, com os olhos queimados, penetrados por metal incandescente. Que os russos te matem com um tiro, bem, mas que te façam isto… não entendo”, vincou. “Alguns tipos de tortura nem os médicos conseguiam explicar.

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Às vezes, recorria ao humor para desanuviar o pesado ambiente. Um dia, disse: “Pessoal, tenho novidades”, sendo elas as novas embalagens brancas, “mais elegantes” do que as pretas que utilizavam para colocar os cadáveres.

Os dias passavam, os mortos não paravam de chegar, as investigações prosseguiam e, ao mesmo tempo, alguns corpos acabaram a pertencer à família de Krolikovski. Quando a polícia procurava por um corpo específico na morgue, o artista reagia, indo além da numeração que os identificava: “Número 173? Sim, essa mulher tão bonita. O 180? Claro, o homem de ar saudável e de aparência desportiva. Inclusive nestes casos devíamos mostrar respeito”.

Os dias em que chegavam mais vítimas eram “duros”: “Fisicamente é muito duro. Levá-los, trazê-los… alguns tiveram de ficar fora, porque não havia espaço nem no camião nem na sala de dentro”.

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Krolikovski tem 39 anos. Nasceu em Donbass, região do leste da Ucrânia onde se desenrolam intensos combates. Entregou-se às artes na região anexada pela Rússia em 2014, na Crimeia, e, neste ano, mudou-se para Kiev, à sombra da revolução que expulsou do poder e do país o Presidente próximo do Kremlin, Victor Yanukovych. “Fugi da propaganda russa e apaixonei-me por aquele movimento em Kiev.

Agora, depois de viver três semanas e meia numa realidade traumática e tão próxima da morte, reconhece: “Na guerra uma parte de mim morreu. Hoje sou uma pessoa totalmente diferente. Não é apenas a morgue, as violações, as torturas… sou outro”.

Espero que tudo isto ajude a entender que a morte é algo real, para que as pessoas sejam menos cruéis. Há muita maldade nas nossas vidas. Acho que os russos, ao fazerem tudo isto, deviam ter o inferno na cabeça”, refletiu.

Inspirado na obra Manual de Psiconáutica (2015), da ex-atriz porno espanhola e licenciada em Belas Artes Amarna Miller, Aleksander Krolikovski vai compilar tudo o que passou num “projeto de prosa, fotos e poesia”.