[ATENÇÃO: se ainda não viu os últimos episódios da quarta temporada de “Stranger Things” e não quer saber absolutamente nada, não leia este artigo agora, guarde-o para ler depois]

A dada altura, num destes dois últimos episódios da quarta temporada de “Stranger Things”, Eleven consegue dominar um helicóptero e atirá-lo ao chão. Uma demonstração dos seus reais poderes, com outros que aconteceram neste regresso, e um momento de elevação da própria personagem. Em simultâneo, uma demonstração de como a série assume o crescimento das suas personagens. Desde o início que nunca foi um problema associar a violência aos atos de Eleven, mas até esse momento, não tinha sido permitido banalizá-lo com o decoro dos exageros dos filmes de acção dos anos 1980 e 1990. Lembramo-nos de John Rambo a destruir um helicóptero soviético como momento alto do cinema de ação desse tempo.

Sinal das intenções desta quarta temporada, explorar géneros e subgéneros que ainda não tinham tido lugar em “Stranger Things” e que são agora possíveis pelo crescimento das personagens e, sobretudo, pelo lado mais físico dos atores, que agora foi possível incorporar. Não há crianças, não há inocência. De certa forma, tudo foi permitido. Incluindo dividir a temporada em duas partes no período de um mês e ter episódios com uma duração superior ao normal, sobretudo os três últimos (onde se incluem os dois desta segunda parte da temporada), com o derradeiro capítulo a bater nas duas horas e meia. E não, não é gralha.

Cada episódio é um mini-evento. E o peso dos minutos sente-se mais no início da temporada. Um início que fez questionar o ritmo de “Stranger Things” — será que estava perdido? Ou seria um ato desesperado da Netflix de fazer render a sua galinha dos ovos de ouro em tempos de crise (rapidamente esta temporada tornou-se na série em língua inglesa mais vista na plataforma nos seus primeiros 28 dias de exibição)? O arranque é coxo, a introdução das diversas narrativas paralelas é excessivo e o tempo que se perde com a aventura californiana torna-se num acontecimento que é rapidamente esquecido. Nenhuma personagem fica melhor por aquilo ter acontecido e — pior — nenhuma personagem é melhor enquanto aquilo acontece. Bem pelo contrário.

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[o trailer do segundo volume da quarta temporada de “Stranger Things”:]

Conforme a quarta temporada de “Stranger Things” se vai esquecendo dessa introdução, melhor vai ficando. O sétimo episódio é um dos melhores – senão o melhor — de toda a série. Porque o que existe de realmente espectacular nesta temporada, que quis ser a mais longa de sempre e assumir que era o início do fim, é o vilão, Vecna, personagem roubada ao universo de “Dungeons & Dragons”, que ganha uma dimensão própria neste universo criado pelos Duffer Brothers. A revelação da identidade de Vecna no sétimo episódio é um daqueles momentos em que se embrulham anos de construção de mitologia de forma muito inteligente. “Stranger Things” soube regressar ao passado e construir  o presente.

Esse sétimo episódio deixou tudo pendurado para estes últimos dois que ficaram disponíveis dia 1 de julho. Impressiona menos o que acontece e mais o que fica por acontecer: algures a meio destas quatro horas percebe-se o real sentido de que isto é apenas o princípio do fim. A “não-resolução” não tem travo amargo, em parte porque a forma como “Stranger Things” embrulha as diversas narrativas e capitaliza tudo nuns bons 45 minutos de tensão permanente, oferece o melhor “embate final” que a série teve até ao momento. E vai-se ouvindo “Running Up That Hill” de Kate Bush a espaços.

Se ainda havia dúvidas, estas quatro horas desfazem-nas: Vecna é um grande monstro. Não é só um grande vilão, ou um contraponto de Eleven, mas é um monstro que conjuga uma série de medos e referências da cultura popular sem qualquer atropelo: vai além da perceção inicial de que isto é um Freddy Krueger com anfetaminas. E, por o ser, “Stranger Things” reencontra um caminho que se julgava perdido: a segunda e a terceira temporada são manifestamente inferiores à primeira e esta quarta joga taco-a-taco com os episódios originais.

Porém, tudo fica por responder. Uma deceção que não poderia deixar de acontecer, mas ao existir poderia ter sido menos acentuada. Os últimos trinta minutos do último episódio são uma gestão das expectativas defraudadas e que ficariam muito melhores como introdução da quinta temporada do que no lugar de cliffhanger desta quarta: é uma temporada que falhou no seu arranque e no desacelerar para o que virá a seguir.

Criou e ganhou um vilão. Melhor, convenceu-nos de que ele esteve sempre lá. Vecna é aquela ideia de monstro impossível de derrotar que enche muito bem o imaginário de fenómenos da cultura popular que não sabem parar, ou parar de crescer. Grande partes das vezes dão grandes flops, muito raramente assentam que nem uma luva no que já existe. Polindo arestas pelo caminho. Não se sente forçado, mas também não se sente como uma personagem que os Duffer Brothers tenham pensado ao criar o universo de “Stranger Things”. É um vilão que nasceu com a própria série e que cresceu com o gosto dos fãs por este imaginário. E estes dois episódios dão-lhe palco para existir na derradeira temporada. Venha mais uma rodada de Vecna.