Quando Luís Montenegro anunciou que o PS não contará com o PSD para um referendo à regionalização em 2024, na direção nacional socialista não houve propriamente uma comoção. A proposta até constava no programa eleitoral do PS — entretanto transformado em programa de Governo –, mas entre os socialistas não há urgência em fazer o referendo em 2024, altura em que uma derrota nas urnas pode ser desastrosa, e sobretudo, nesta fase, o PS de Costa não quer confrontar o PSD de Montenegro.
“Não queremos fazer dessa uma questão de confrontação”, comentou com o Observador um dirigente do partido quando questionado com a posição agora assumida pela nova direção do PSD sobre o referendo à regionalização. Um alto dirigente acrescenta que o adiamento do referendo não é sequer um problema para o PS, que ainda está numa difícil negociação com os autarcas para conseguir avançar com o processo de descentralização, tendo o acordo final visto os primeiros sinais positivos nas reuniões de autarcas que aconteceram nesta terça-feira.
Além disso, “a culpa ficará deles”, atira a mesma fonte, referindo-se ao PSD que pôs travão ao processo no discurso de encerramento do Congresso do partido e rematou, ainda esta terça-feira, que está “absolutamente contra um referendo em 2024.″ E no entretanto, continua o mesmo alto dirigente, “a descentralização poderá ser aprofundada de forma sustentada.”
No topo do partido a indicação é não fazer desta uma urgência e um dirigente comenta ao Observador que “ainda há muito tempo até 2024” e que, pelo meio, o PS está a avançar com aquilo a que se propôs: “A descentralização e a democratização das CCDR.” Quanto ao resto, o referendo, se não avançar, como o PS propôs, em 2024 então não será porque os socialistas não quiseram, mas sim porque o PSD não o permitiu.
Para um deputado do PS, “taticamente o PSD comete dois erros: não quer a regionalização e é responsável pelo PS sair reforçado neste processo”. Isto porque “está a dar a oportunidade a Costa para dizer que a regionalização que os autarcas querem não avança por culpa do PSD”. E as eleições autárquicas são logo ali ao virar da esquina, em 2025. Ter o assunto a marinar e com o ónus de não ter avançado nas costas do PSD poder ser um trunfo nessa altura e sobretudo, como lembra um deputado socialista, “o PS também podia perder o referendo”. Nesse ano o país já irá às urnas, nas Europeias, o que é sempre um momento de avaliação do trabalho do Executivo. Somar outro momento do género não é coisa que o PS veja com os melhores olhos.
PS sente desilusão q.b. “Temos de respeitar”
Um pouco por todo o PS, incluindo junto de regionalistas convictos, o feedback sobre a posição de Montenegro é semelhante: desilusão, sim… quanto baste. A ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, reagia esta quarta-feira às declarações de Montenegro dizendo que as ouviu “com o maior dos respeitos” e que, na verdade, no atual contexto é “extemporâneo” falar de regionalização: “O principal foco do Governo neste momento é a descentralização. Se não a fizermos bem, não vale a pena falarmos na regionalização”.
As declarações da ministra chegam numa altura em que, de resto, se comenta dentro do PS que o momento é mais adequado para aprofundar a descentralização — posição que teve até eco nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, que constatou, em reação a Montenegro: “Isso pode querer dizer que, de facto, se tem de apostar mais na descentralização, uma vez que é muito difícil, com o principal líder da oposição a opor-se à regionalização, haver no futuro próximo regionalização”.
Marcelo considera “muito difícil” haver regionalização sem apoio do PSD. “Vou meditar sobre isso”
E é nisso mesmo que o Governo está a apostar: esta terça-feira foi dado um passo importante no pesado processo da descentralização, com o Executivo a apresentar aos autarcas um novo acordo para a Educação e a Saúde que responde a boa parte das reivindicações do poder local — um avanço reconhecido até pelo presidente dos autarcas sociais-democratas, Hélder Sousa Silva, que disse ao Observador ver no acordo “um avanço interessante e considerável”. É uma vitória importante para o Executivo, que vê finalmente a luz ao fundo do túnel num processo que se arrasta há anos e pode, agora, alegar que apostou seriamente na descentralização do país — mesmo que a regionalização pareça congelada.
A presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Luísa Salgueiro — mais uma socialista que é regionalista, tal como a maioria dos autarcas, que fazem parte do órgão a que preside — saiu das reuniões de terça-feira, em que o acordo para a descentralização foi apresentado, satisfeita, mesmo reconhecendo que a posição do novo líder do PSD é “uma má notícia”. Mesmo assim, e lembrando que a ANMP já tinha, em congresso, mostrado grande “convergência” quanto à regionalização, rematou a questão sem grandes lamentos: “Temos de respeitar, são opiniões diferentes”.
Do lado da presidente dos autarcas socialistas, a presidente da Câmara de Portimão, Isilda Gomes, questionada pelo Observador, há um “lamento” pela posição do novo PSD, mas também a constatação de que os próximos passos estão “nas mãos do secretário-geral do PS e de quem ele ouve”, com uma certeza: “Esta é uma área que requer amplo consenso” — o que, sem acordo do PSD, não existe.
O também regionalista convicto Eduardo Vítor Rodrigues, presidente da Câmara de Gaia e dirigente socialista, falou à rádio Observador no mesmo sentido: criticando os argumentos de Montenegro, que acusou de procurar apenas criar uma “rutura” com o PS para usar como bandeira no congresso, o socialista defendeu que o PS “não deve desistir” da regionalização. Mas, admitindo que o objetivo fracassa, apontou desde logo uma conclusão, de baterias apontadas ao PSD: “Se não for possível, historicamente, cada um ficará com as suas responsabilidades”.
Os difíceis passos para regionalizar
Enquanto isso, o PS vai contando com o que está inscrito no seu programa eleitoral para provar que quis avançar e o PSD é que travou. A promessa de António Costa é “criar as condições necessárias para a concretização do processo de regionalização, mediante a realização de um novo referendo em 2024.” Estava no programa eleitoral e está no programa do Governo.
Os documentos também referiam que o PS quer “reabrir, a partir de uma avaliação da reforma das CCDR, de forma serena e responsável, o debate em torno do processo de regionalização nos próximos anos, com o objetivo de realizar um novo referendo sobre o tema em 2024.” Não tendo o PSD ao seu lado, não há hipótese de avançar e qualquer crispação pode minar o tema, daí que os socialistas avancem com pés de lã.
A revisão constitucional de 1997 condicionou muito a regionalização do país, fazendo-a depender de legislação que defina os órgãos e o funcionamento das regiões administrativas, o que vai exigir uma maioria qualificada, ou seja, o acordo de dois terços dos deputados. A maioria absoluta socialista não chega, pelo que Costa precisará sempre do PSD.
Além disso, o processo tem obrigatoriamente de passar por um referendo, também de acordo com a Constituição: “A instituição em concreto das regiões administrativas, com aprovação da lei de instituição de cada uma delas, depende da lei prevista no artigo anterior e do voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta, de alcance nacional e relativa a cada área regional.”