Portugal encontra-se por estes dias numa situação “explosiva” no que toca ao risco de incêndios florestais, com indicadores meteorológicos inéditos desde que há registos. Trata-se de uma situação mais grave e mais preocupante do que aquela que se vivia em 2017 — ano que continua cravado na memória coletiva dos portugueses devido aos incêndios de junho, em Pedrógão Grande, e de outubro, que no total causaram a morte a mais de uma centena de pessoas.
A análise é feita ao Observador pelo climatologista Carlos da Câmara, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, especialista em análise do risco de incêndios e um dos cientistas por trás do Ceasefire, uma inovadora ferramenta de análise e previsão de índices de risco de incêndio florestal em Portugal. Carlos da Câmara partilhou com o Observador um conjunto de gráficos que ajudam a ilustrar como o risco de incêndio em Portugal é hoje maior do que alguma vez foi desde que há registos.
Afinal, o que aconteceu na meteorologia portuguesa em 2017 e o que está a acontecer agora? Como podemos comparar o atual risco de incêndio com a situação de há cinco anos?
2017, o ano das muitas anomalias climáticas
Carlos da Câmara explica que para analisar a situação dramática que se viveu em 2017 é necessário distinguir o que se passou em 17 de junho e em 15 de outubro desse ano.
No dia 17 de junho, em que deflagrou o incêndio de Pedrógão Grande, que causou pelo menos 64 mortos, mais de 250 feridos e cerca de 500 milhões de euros de prejuízos, “o que houve foi uma instabilidade atmosférica extrema, que levou a que duas ignições — que tiveram origem em cabos elétricos que tocaram no cume de umas árvores — eventualmente deflagrassem com uma rapidez extrema e que, por causa disso, originaram dois fogos de enormes proporções que acabaram por se juntar”.
No caso do dia 15 de outubro, a situação foi mais interessante do ponto de vista da análise científica, explica Carlos da Câmara, salientando que os incêndios daqueles dias, que afetaram vários pontos da região Centro e causaram 49 mortes, resultaram da “conjunção de várias exceções“.
Em primeiro lugar, 2017 foi um ano de “seca enorme que se prolongou durante um verão muito severo”, o que significa que Portugal chegou a outubro com “a vegetação com índices de secura nunca vistos até à altura”. Em segundo lugar, a passagem do furacão Ophelia pela costa portuguesa “levou a ventos de sul extremamente intensos”, um ingrediente central na receita para o desastre. Em terceiro lugar, neste cenário de condições perfeitas para a propagação dos fogos, naqueles dias houve um “aumento nunca visto do número de ignições”, que se explica essencialmente por fatores humanos: “Sabia-se que depois vinha a chuva e que, por isso, era a última hipótese para algumas atividades agrícolas.”
Estas “três coisas anómalas levaram a que Portugal ardesse de forma anómala, nunca vista“.
E este ano, o que se está a passar?
De acordo com Carlos da Câmara, há hoje mais condições para a ocorrência de grandes incêndios em Portugal continental do que em 2017.
Novamente, repete-se o padrão da seca, que nos últimos meses afetou Portugal de modo particularmente grave e obrigou o Governo a adotar medidas excecionais de resposta à falta de água. Além dos impactos óbvios na agricultura e na economia, a seca reflete-se com grande intensidade na vegetação. “Temos, neste momento, a vegetação com índices de stress nunca vistos“, diz Carlos da Câmara.
Em segundo lugar, as condições meteorológicas criam neste momento um contexto de grande perigo para a ocorrência de incêndios. “As temperaturas estão elevadíssimas, os níveis de humidade do ar estão extremamente baixos e os ventos extremamente fortes”, explica. “Ainda acresce que durante a noite têm estado ventos de leste e temperaturas acima dos 25ºC”, avisa o climatologista, sublinhando que esta realidade ameaça a “janela de oportunidade para combater incêndios” que ocorre durante a noite, quando a humidade noturna ajuda no combate às chamas.
“Os fogos que já começaram, os bombeiros não conseguem dar cabo deles à noite”, resume.
Isto significa que se verificam dois dos três lados do fenómeno a que os cientistas chamam o “triângulo do fogo” — o combustível e o comburente. Falta o terceiro lado: a ignição. “Para poder resultar numa situação catastrófica, faltam as ignições. E é isso que podemos controlar”, diz Carlos da Câmara. “Neste caso, não pode ser só uma diminuição das ignições. Tem de ser tolerância zero. Basta haver uma, duas ou três e está o caldo entornado. Todos os indicadores que tenho indicam que a situação está explosiva. A única hipótese é evitar as ignições, é evitar carregar no botão para explodir.”
Números nunca antes vistos
“No que respeita ao stress da vegetação e à predisposição para grandes incêndios, nunca vi nada parecido“, diz Carlos da Câmara, que há várias décadas estuda o risco de incêndios em Portugal. “Quando se diz é excecional, é mesmo excecional”, acrescenta, partilhando com o Observador dois gráficos produzidos com a ferramenta Ceasefire que, diz o cientista, ilustram perfeitamente a situação atual no país.
O primeiro gráfico mostra “a evolução entre os dias 1 e 15 de julho do índice de perigosidade meteorológica de incêndio”, segundo explica o climatologista. A curva a preto corresponde à evolução deste índice em 2022 (dados registados até dia 9 e projeção até dia 15).
As restantes linhas mostram o histórico dos registos que existem entre 1980 e 2021 — os diferentes percentis e, especialmente, a vermelho, os valores máximos registados em cada dia. Como é possível ver pela linha preta, a projeção é bastante clara: os cientistas estimam que a partir deste domingo os valores deste índice excedam os máximos históricos (com picos preocupantes previstos para as próximas terça, quarta e quinta-feiras). Este gráfico diz respeito a uma região que inclui o sul da costa alentejana e o sotavento algarvio — região que Carlos da Câmara diz ser representativa do estado da generalidade do país.
O segundo gráfico é ainda mais esclarecedor e mostra “a evolução desde 1 de junho até hoje de um índice que dá a predisposição de uma região para haver grandes incêndios”. Neste caso, o gráfico respeita ao nordeste transmontano, mas também aqui se trata de uma figura representativa da realidade do território nacional.
A azul surge a curva relativa a este ano, bastante acima da curva de 2017, que surge a violeta. Também no gráfico estão as curvas dos quatro anos com mais incêndios na região (a vermelho) e aquelas dos anos com menos incêndios (a verde). A cinza, é possível ver as curvas de todos os outros anos entre a década de 1980 e hoje. A conclusão é clara: neste momento, este indicador já está em máximos históricos.
Carlos da Câmara dá ainda um dado adicional que mostra como este ano o potencial de incêndios em Portugal está realmente acima de toda a realidade passada: os incêndios estão a desenvolver-se com uma rapidez muito maior.
O climatologista afirma-o com base nos dados recolhidos pela ferramenta Ceasefire, que cruza várias fontes de informação para detetar a localização dos incêndios, incluindo a informação oficial da Proteção Civil e também os dados recolhidos através de satélites — que os académicos Carlos da Câmara e Sílvia Nunes, da FCUL, têm monitorizado permanentemente.
“Um fogo, para ser detetado por satélite, tem de ter uma energia razoável. Por isso, nos outros anos, primeiro aparecia nos nossos mapas o alerta da Proteção Civil e só depois aparecia o nosso alerta por satélite. Agora, primeiro aparecem os fogos detetados por satélite e só depois os alertas da Proteção Civil“, diz o cientista.
“Isto significa que o fogo está a desenvolver-se mais rapidamente do que o habitual”, remata.