O vice-Procurador-Geral de Angola, Mota Liz, afirmou nos últimos dias que “não se prendem pessoas em dia de óbito”, numa aparente mensagem tranquilizadora destinada a uma das filhas de José Eduardo dos Santos, Isabel, caso esta quisesse ir a Luanda participar nas cerimónias fúnebres do pai, independentemente de casos de justiça que corram naquele país. Mas será que essa afirmação tem respaldo na lei do país?

Ao Observador, uma fonte ligada à magistratura explica que uma suspensão total de obrigações perante a justiça só poderia ocorrer por decisão política, e traria grandes desafios para a aplicação da lei. “Na eventualidade de se admitir um acordo nesse sentido, à partida, seria um acordo que acarretaria com ele muitos vícios”.

Reclusos podem acompanhar cerimónia “sob custódia”

O que a lei angolana determina, explica, é que “no caso de reclusos a cumprir pena, de pessoas em prisão provisória, ou com qualquer medida privativa de liberdade”, as autoridades “permitam que acompanhem, por exemplo o funeral de um ente querido”. “Mas mesmo aí, a pessoa irá sob custódia, acompanhada pela polícia, e regressa no fim das cerimónias, para cumprir a medida que lhe fora imposta”.

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Mas esse não é o caso de nenhum familiar de José Eduardo dos Santos com quem o estado angolano está a tentar uma negociação para viajarem até Luanda. No caso de Isabel dos Santos não há sequer uma condenação naquele país, dado que o caso que a envolve ainda está a ser investigado.

“Um acordo nesse sentido, eu teria, por isso, dificuldade em enquadrar do ponto de vista legal. Eventualmente as autoridades poderiam era fazer vista grossa”, diz a mesma fonte, lembrando que, por não haver condenação, nem sequer se poderá estar perante e hipótese de um indulto presidencial: “Também se chegou a falar num possível indulto por decisão presidencial, mas também não vejo como, até porque há também uma dificuldade, os processos que correm não tiveram ainda apuramento, estão, penso, ainda na fase de instrução preparatória, até agora as autoridades não conseguiram notificar regularmente de todos os atos que foram já praticados no processo”.

Sem acordo político, não há impedimento para ouvir ou notificar após funeral

Sem qualquer acordo, apenas com base na lei, as autoridades até poderiam aguardar o fim das cerimónias para não interromper um momento como um funeral, mas não teriam qualquer impedimento de ouvir, notificar ou tomar qualquer decisão após essas cerimónias.

“Tenho dificuldade em conceber que se pudesse do ponto de vista legal fundamentar que mesmo depois das cerimónias alguém teria o direito de sair de território nacional sem ser notificado ou ouvido, ou o que a Justiça tiver por conveniente”, disse lembrando que qualquer solução que o permitisse poderia ter efeitos na imagem e credibilidade da Justiça: “Essa é talvez das primeiras questões que se poderão levantar neste caso”.

Quanto à frase em concreto do vice-Procurador-Geral da República, a mesma fonte afirma que não a viu como uma armadilha, apenas como um “enquadramento geral”. “A minha interpretação quando ouvi foi a do enquadramento geral, parte-se sempre do pressuposto que se a pessoa não se encontra detida e entra com o objetivo de acompanhar o funeral, naquele dia naturalmente poderá não se concretizar a detenção. Mas eu já não posso estender esse entendimento a um possível dia em que a pessoa esteja a deslocar-se de regresso ao local de origem, neste caso a outro país”, conclui.

CPP angolano não prevê exceções para detenções em “dias de óbito”

Também outros juristas ouvidos pela Lusa concordam que não existe no Código de Processo Penal daquele país qualquer exceção que permitisse uma entrada e saída do país com estas características. A única hipótese que o jurista Sebastião Vinte e Cinco vislumbra é a de um acordo político: “Sendo esta negociação (para a transladação do corpo de Eduardo dos Santos) de natureza político-jurídica, pode abrir-se uma exceção, vai haver uma espécie de suspensão da lei em determinado momento para cumprir o acordo que se vai conseguir ou que está a ser negociado, em princípio é isto”.

O normal, afirma, é a pessoa ser detida onde for encontrada sempre que exista um mandato, ainda que explique que, por norma, nunca se interrompe a cerimónia: “Devem esperar quando terminar, por exemplo, aliás há exemplos internacionais disso”.

Também ouvido por aquela agência, o jurista Rui Verde confirma que o CPP daquele país, no artigo 255.º, “especifica as condições em que as pessoas podem ser detidas, mas não refere exceções para óbitos, casamentos ou outras ocasiões”.