Começo este texto poucos minutos após saírem as primeiras notícias sobre a morte de Maria de Lourdes Modesto (esta terça-feira, 19 de julho, aos 92 anos). Na maioria, leio a expressão “diva da cozinha portuguesa”. Percebo. Soa elogioso e tem o seu quê de poético e etéreo, portanto ajusta-se à circunstância trágica.
Mas, e perdoem-me a dissonância, Maria de Lourdes Modesto não era uma diva. Pelo menos no habitual sentido da palavra. As divas são, em princípio, inacessíveis aos comuns mortais. Mesmo em sentido figurativo, diva implica altivez, um ego do tamanho da admiração que gera. Da minha experiência, Maria de Lourdes Modesto não era nada disso. Pelo contrário.
Quando a conheci, ela tinha já 80 anos. Tive, por isso, uma sensação semelhante à que se tem quando chega atrasado a uma festa que já vai longa mas onde apetece muito ficar. “Que pena não ter chegado antes.”
Eu era um mero jornalista em início de carreira, na Time Out Lisboa, cheio de questões relacionadas com gastronomia que ela poderia achar irrelevantes ou inoportunas. Ela era uma figura pública muitíssimo respeitável, com 12 anos de horas a fio na televisão pública – numa altura em que não havia grandes alternativas de entretenimento – e milhares de páginas de livros essenciais para qualquer biblioteca gastronómica que se preze no currículo.
Se achou as minhas questões inoportunas ou irrelevantes não se descoseu. Respondeu a todas, recorrendo a doses semelhantes de sabedoria empírica e científica. Recordou histórias, partilhou receitas de família. “Só não posso responder ao que não sei”, disse-me aí pela primeira vez. A conversa acabou porque tinha de ir fazer doce de tomate. O seu mítico doce de tomate. “Um dia há-de provar”, prometeu.
Percebi nesse dia porque é que numa área onde tão poucos são unânimes, Maria de Lourdes Modesto conseguia sê-lo. Por que razão era admirada por chefs com personalidades e registos tão diferentes como José Avillez, Henrique Sá Pessoa ou Vítor Sobral? Porque é que autores consagrados, como José Quitério ou Miguel Esteves Cardoso, lhe prestavam reverência e sentiam, mais do que apenas respeito ou admiração, verdadeiro carinho por ela? A resposta era simples: Maria de Lourdes Modesto nunca se fechara, nunca deixara de ensinar e inspirar, como fizera tantos anos a fio na televisão e, depois disso, com os seus livros.
Mantivemos o contacto. Por email, a maioria das vezes – Maria de Lourdes estava praticamente surda há já alguns anos, pelo que falar ao telefone era um suplício. Mas também podia ser divertido pelo mesmo motivo: as chamadas tinham de ser à hora combinada e para o telefone de casa; às vezes ela percebia o oposto do que se lhe dizia, ria-se despreocupada, desculpava-se, a conversa seguia como se nada fosse.
Um dia, quis saber com ela a origem do doce da casa. Porque raio se chamaria doce da casa a um doce de três camadas igual em todo o lado. Qual seria A CASA primordial, a fonte dessa receita tão reproduzida? Maria de Lourdes levou a pergunta muito a sério. Apesar da idade, mantinha o espírito crítico, a curiosidade, a vontade de dar respostas – o que explica o facto de ter continuado a publicar até ao ano passado.
Pediu-me algum tempo para reunir bibliografia, e que lhe ligasse novamente. Assim fiz. Falámos de triffles, doces da avó, natas do céu e outros que tais. Não resolvemos o mistério, mas foi uma tarde muito bem passada.
Em 2016, concedeu uma entrevista de vida para o Observador, na sua casa, em São João do Estoril. Quando percebeu que ia ser filmada, assustou-se. Não se tinha arranjado para isso. “Nem fui ao cabeleireiro!”, reclamou. Não precisava: continuava dona e senhora de uma assinalável telegenia e capacidade de contar histórias, como a de que reuniu as receitas de Cozinha Tradicional Portuguesa por achar que sofria de um tumor incurável. Esse é apenas um dos muitos livros que nos deixa – livros e não só, publicou panfletos de receitas, crónicas e até crítica gastronómica, sempre numa escrita escorreita e cativante.
No dia dessa entrevista tinha acabado de enfrascar doce de tomate. Ainda não estava bom para se provar. “Tem de cá voltar noutra altura”, voltou a prometer.
Continuámos a falar, sobretudo quando descobriu o Facebook, já perto dos 90 anos. Ela, como boa octogenária, usava amiúde a função “Acenar” para espoletar a conversa. Resultava sempre.
Apesar de conversas aqui e ali, nunca mais voltei à casa de São João do Estoril, cheia de flores, que ela cuidava com tanto amor. Nunca provei, por isso, o doce de tomate que tantos elogiam. Mas o pior não é isso. É que ainda me restam muitas dúvidas por tirar.
Tiago Pais foi jornalista de gastronomia no Observador. Hoje é publicitário, mas continua a gostar de comer