Os alunos anónimos representados pelo “Grupo de Estudantes de Medicina da Universidade do Algarve” (UAlg) dizem estar a ser “coagidos” a fazerem as rotações hospitalares (durante o 5.º e 6.º ano do curso) no Hospital Garcia de Orta (HGO) em vez do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), mais próximo da universidade e área de residência. A diretora do curso rejeita a acusação, mas apresentou a carta de demissão ao reitor perante a perda de confiança dos alunos. O reitor, no entanto, não a quer substituir.

A denúncia foi feita numa carta aberta, sem signatários, divulgada esta terça-feira, mas José Ponte, professor emérito da Universidade do Algarve (agora a viver no Reino Unido) e fundador do curso, diz que se trata de uma “fraude”. “Estive a falar com os alunos e ainda não se descobriu quem é que faz parte deste grupo”, conta ao Observador. Até ao momento, o Observador ainda não conseguiu estabelecer contacto com os alunos que alegadamente apoiam a carta.

Já o presidente do Núcleo de Estudantes de Medicina da UAlg (Nemed), Luís Gomes, diz ao Observador a carta não teve origem neste órgão — como tal “não tem qualquer valor” —, nem sabe quem serão os responsáveis por ela. Por enquanto, o núcleo não tem uma declaração oficial sobre o assunto, mas Luís Gomes afirma que será convocada uma Assembleia Geral Extraordinária, onde todos os alunos do mestrado integrado da FMCB podem estar presentes, para discutir a situação. Como resultado do plenário, será “emitido um parecer”.

O plenário é o único órgão formal, oficial e representativo dos alunos do mestrado integrado em Medicina da Universidade do Algarve”, afirma Luís Gomes, presidente do Nemed.

Francisco Castro Sousa, delegado da turma da 11.ª edição do mestrado integrado em Medicina da UAlg, reforça que este alegado grupo de estudantes não tem legitimidade para falar em nome dos alunos de Medicina. “Vamos efetuar um plenário com todos os estudantes de Medicina, de forma a redigir um documento conjunto em que realmente transpareça a opinião da maioria dos estudantes, em vez de uma carta anónima de um ‘grupo de estudantes’ sem legitimidade para tal”, diz ao Observador.

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O Hospital Garcia de Orta, agora apresentado como uma das principais soluções de estágios clínicos para os alunos do Algarve, não é uma solução nova. A diretora do curso, Isabel Palmeirim, diz ao Observador que os hospitais a sul do Tejo (incluindo os de Setúbal, Beja e Évora) sempre foram parceiros e receberam alunos da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas (FMCB) da UAlg.

Já José Ponte diz que “enviar alunos para fora do Algarve acontece desde o início do curso” há mais de 10 anos. “Sempre me recusei a enviar alunos para serviços medíocres, onde só vão aprender os vícios.” O anestesiologista refere-se a alguns serviços dos hospitais de Faro e Portimão, sem especificar.

Doação de municípios, empurrar de responsabilidades e tribunais. O caso dos ventiladores avariados que acabou em queixa-crime por ofensa

A decisão de incluir (ou não) o Hospital Garcia de Orta no consórcio ABC (Algarve Biomedical Center) — que inclui o CHUA, a Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas (FMCB) da UAlg e o centro de investigação biomédica da universidade (ABC-RI) — será do Governo, diz Isabel Palmeirim, diretora do curso e da faculdade, ao Observador. Esta solução terá sido apresentada durante a reunião que juntou a diretora do curso e o reitor da universidade com a ministra da Saúde, Marta Temido, e a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Elvira Fortunato.

Foram estes dois ministérios que criaram o consórcio, através de portaria ministerial, e só estes (ou o Governo) o poderiam extinguir ou modificar. A portaria referente a esta potencial nova resolução ainda não foi publicada e o Observador não teve acesso a ela.

Diretora do curso apanhada desprevenida

Isabel Palmeirim confirma ao Observador que os alunos poderão fazer os seus estágios clínicos no Hospital Garcia de Orta, mas também o poderão fazer nos hospitais particulares do Algarve que tenham capacidade formativa — uma mês por cada especialidade para os alunos de 5.º ano e 15 dias por especialidade para os alunos de 6.º ano. A diretora já tinha começado a reunir com os alunos para avaliar a disponibilidade de fazerem os estágios no hospital de Almada — uns vivem em Lisboa, outros têm facilidade em mudar-se temporariamente, mas outros não o querem fazer.

Não podemos aceitar a devassa pela vida privada, onde os estudantes são estratificados após exposição da vida privada perante os colegas, consoante o estatuto socioeconómico e familiar”, lê-se na carta, sem assinaturas, atribuída ao “Grupo de Estudantes de Medicina da Universidade do Algarve”, que não existe formalmente e do qual não havia conhecimento até agora.

A diretora do curso diz que foi apanhada desprevenida com o conteúdo da carta aberta. Rejeita ter coagido os alunos ou ter feito qualquer devassa da vida privada dos mesmos. Isabel Palmeirim afirma, por outro lado, que reuniu com os alunos em pequenos grupos, consoante a especialidade do próximo estágio, para aferir quem teria interesse ou facilidade em deslocar-se para a área da grande Lisboa e quem não o poderia fazer por questões familiares ou outras. A professora estava a procurar alojamento e ajuda nos transportes para os alunos com mais dificuldades financeiras — e frisa “estava”, porque parou assim que apresentou a demissão.

Premio Isabel Palmeirim

Isabel Palmeirim, diretora do mestrado integrado em Medicina e diretora da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas, foi distinguida com um prémio dos alunos, em julho de 2022 — Medicina na UAlg/Facebook

Os presidentes do Conselho Científico e do Conselho Pedagógico da FMCB, em comunicado, “manifestam a sua total confiança na capacidade e competência” da atual diretora, “para as funções que lhe foram atribuídas por nomeação destes conselhos, nomeadamente para a coordenação do cumprimento das atividades letivas do mestrado integrado em Medicina”. O Conselho Científico, responsável pela nomeação da diretora, “reitera a sua confiança no excelente trabalho desenvolvido” por Isabel Palmeirim.

O Conselho Pedagógico, responsável por resolver as questões relativas às ofertas formativas, por sua vez, diz não ter recebido qualquer pedido formal de apreciação da situação. “Este órgão de gestão desconhece a existência, à data de publicação [3 de agosto de 2022], de qualquer solicitação formal por parte dos estudantes do mestrado integrado em Medicina sobre a preparação das unidades curriculares para o ano letivo 2022/2023, que decorre com normalidade neste período”, lê-se no comunicado conjunto dos conselhos.

Cartas anónimas veiculadas através de redes sociais não podem ser consideradas para efeitos de apreciação pelo órgão competente para deliberar sobre matérias pedagógicas ou científicas pertinentes para a oferta formativa da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas”, remata o Conselho Pedagógico.

Reitor quer manter a diretora da faculdade

A reitoria da Universidade do Algarve, questionada pelo Observador, diz que também não recebeu a carta e que está a tentar verificar junto do Núcleo de Estudantes de Medicina da UAlg o que se passa. “Temos conhecimento de uma carta aberta de estudantes (assim o afirmam), mas que não foi enviada para a Reitoria e que não se encontra assinada.”

Em relação ao pedido de demissão, a reitoria diz que vai seguir os Estatutos da Universidade do Algarve. O artigo 50.° prevê que, em caso de renúncia, o reitor invista interinamente o subdiretor e abra o procedimento de eleição do novo diretor. No entanto, “não está em curso nem a investidura interina da subdiretora, nem a abertura de procedimento de eleição de novo(a) diretor(a)”, responde Paulo Águas, reitor da Universidade do Algarve, ao Observador.

Tudo farei para que a professora Isabel Palmeirim possa dar continuidade ao excelente trabalho que tem vindo a desenvolver como diretora da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve”, assegura o reitor Paulo Águas.

Na alegada carta dos alunos, a que o Observador teve acesso, pode ler-se também: “Pedimos que não utilizem os estudantes como arremesso neste conflito, colocando em causa a vida familiar e profissional de cada um de nós”. Em causa está o processo litigioso entre o conselho de administração do CHUA e o Centro Biomédico do Algarve (ABC), uma situação tensa que tem já dois anos, como lembrou o Observador.

A tensão entre o CHUA e o ABC teve início por causa da compra de ventiladores que não funcionavam, mas chegou aos media e à justiça como resultado de uma frase do presidente do ABC, Nuno Marques, que o conselho de administração interpretou como ofensa e contra o qual apresentou uma queixa-crime, que o Ministério Público decidiu não acompanhar. Contactado pelo Observador, o conselho de administração do centro hospitalar diz que o “litígio está sanado”.

Da parte do CHUA, certamente, não há conflito de qualquer natureza com a Faculdade de Medicina, com algum dos seus membros, sequer com os que compõem o ABC com o qual nem temos já processo ou litígio considerando ter-se sanado favoravelmente a questão dos bens doados ao CHUA”, conforme resposta enviada ao Observador.

Isabel Palmeirim também faz parte da direção do ABC e diz ter apresentado a demissão como diretora do mestrado e da faculdade porque a carta aberta vem assinada em nome “do grupo de alunos” — e não de “um grupo de alunos” —, embora não saiba exatamente quantos alunos apoiaram a missiva.

José Ponte suspeita que não haja qualquer aluno envolvido nesta carta ou que serão muito poucos. Para o professor emérito, esta é apenas mais uma estratégia do conselho de administração (CA) do CHUA para acabar com o curso de Medicina tal como ele é. O médico lembra que um antigo presidente do CA, Pedro Nunes, tentou influenciar o reitor da altura para mudar o curso mais ao estilo dos cursos ministrados nas universidades clássicas — o que é contrário à própria criação do curso. O reitor quase cedeu, mas teve de voltar atrás perante a pressão dos alunos e docentes que rejeitaram a ideia.

Trabalhadores do Algarve Biomedical Center manifestam-se preocupados com futuro

O alegado grupo de alunos do mestrado integrado em Medicina pede que a direção do mestrado, o conselho de administração do CHUA e a presidência do ABC entrem em diálogo “para um entendimento célere, sereno e diplomático entre todas as partes”. Mas dizem manter “a sua posição de neutralidade, afastando-se de qualquer juízo ou tomada de posição”.

O conselho de administração (CA) do CHUA diz que recebeu “a referida carta no email geral do conselho de administração”, mas que “desconhece a situação” — o Observador tinha questionado o CHUA sobre a integração do Hospital Garcia de Orta no consórcio ABC. O CA diz ter ” já recebido contacto de alguns alunos preocupados” e afirma estar “disponível para receber os representantes dos alunos para os ouvir”.

Sabendo que a maior parte dos alunos têm residência e atividade assistencial já em simultâneo na região, compreendemos os seus anseios, sendo que o CHUA e a UAlg mantêm a colaboração institucional normal”, acrescenta.

Ao Observador, o CA diz ter agendado “nova tentativa de reunião da Comissão Bilateral Formal com a direção da Faculdade de Medicina para preparar o novo ano letivo”. O reitor confirma que recebeu a mesma informação por parte do hospital, de tentativas recentes para agendar uma reunião, mas também teve conhecimento das dificuldades sentidas pela FMCB. Isabel Palmeirim indica que ao longo de dois anos, desde que o CA tomou posse, deparou-se sempre com a indisponibilidade do hospital para agendar estas reuniões que visavam fazer o planeamento da formação dos alunos.

Tal como os funcionários do ABC, que se manifestaram junto ao hospital, os alunos dizem recear a continuidade do projeto que visava levar melhores cuidados de saúde à região e fixar médicos no Algarve. “Rejeitamos que a qualidade e futuro da formação médica no Algarve seja desvirtuada por conflitos institucionais alheios ao contexto académico.” Ao contrário do que está a acontecer com o grupo que alegadamente enviou a carta, porém, os funcionários responderam às solicitações do Observador para fornecer esclarecimentos.

Atualizado às 14h30 com as declarações de Isabel Palmeirim, diretora do curso, ao Observador
Atualizado às 18h30 com as declarações de José Ponte, fundador do curso, ao Observador (nome corrigido a 4 de agosto, 14h15)
Atualizado às 18h55 com a resposta da reitoria da Universidade do Algarve ao Observador (corrigida às 20h10) e o comunicado dos conselhos científico e pedagógico da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas
Atualizado às 19h40 com as declarações de Luís Gomes, presidente do Nemed, ao Observador
Atualizado às 00h00 com declarações do reitor Paulo Águas ao Observador
Atualizado às 14h10 de 4 de agosto com as respostas do conselho de administração do CHUA ao Observador
Correção às 14h30 de 4 de agosto: não há confirmação de que o HGO tenha sido incluído no consórcio ABC