O conselho presbiteral do Patriarcado de Lisboa, organismo colegial que representa os padres da diocese, publicou esta terça-feira um comunicado para defender o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na sequência das notícias vindas a público nos últimos dias relativas ao modo como o patriarca lidou com denúncias de abusos sexuais de menores no passado, e a lamentar a inexistência de um debate sério sobre o problema dos abusos na Igreja.

Na curta nota, assinada pelos cinco padres que compõem o secretariado permanente daquele organismo (de que fazem parte algumas dezenas de sacerdotes), o conselho presbiteral critica a transformação das primeiras notícias vindas a público num “caso”, lamentando que se tenha perdido uma oportunidade para um debate sério sobre problemas estruturais da Igreja Católica, principalmente sobre o clericalismo, apontado pelo Papa Francisco como a grande causa da crise dos abusos na Igreja Católica.

“Vivemos tempos exigentes em termos eclesiais. Semana após semana, surgem notícias de abusos sexuais na Igreja em Portugal. Alguns são casos já investigados, outros até já julgados; uns condenados, outros arquivados”, lê-se na nota, publicada esta noite na página do Patriarcado de Lisboa.

“E, em vez de possibilitar uma maior tomada de consciência acerca do problema dos abusos sexuais na Igreja e de conduzir a um debate sério sobre o clericalismo (como o Papa Francisco já indicava na carta enviada ao Povo de Deus sobre os abusos sexuais, abusos de poder e abusos de consciência, em 20 de agosto de 2018), a dinâmica mediática transformou tudo em mais um ‘caso’“, acrescenta o comunicado.

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Os padres afirmam que a Igreja Católica se encontra atualmente “num caminho de conversão para que crimes destes nunca mais sejam encobertos, e que, de futuro, preventivamente, tudo se faça para que eles não se repitam”.

Queremos contar com o nosso Patriarca, Cardeal Manuel Clemente, como contámos até aqui. Para que, em comunhão com ele, nos anime a irmos mais além no serviço ao Povo que nos é confiado e na procura da verdade e da justiça que o anúncio do Evangelho comporta”, diz ainda a nota, que termina: “Confiamos a Deus o nosso Patriarca Manuel, para que Ele o abençoe e fortaleça, em todas as circunstâncias da sua vida. O cuidado materno de Nossa Senhora não lhe há de faltar.”

Na terça-feira da semana passada, o Observador noticiou que o cardeal-patriarca de Lisboa teve conhecimento de uma denúncia de abusos sexuais de menores contra um padre do Patriarcado de Lisboa e chegou mesmo a encontrar-se com a vítima, mas não comunicou o caso à polícia e manteve o padre em funções como capelão num hospital. O sacerdote encontrava-se naquelas funções desde que, no final da década de 1990, o caso havia sido denunciado ao seu antecessor, D. José Policarpo, que optou por não comunicar o caso a polícia e por resolver a situação transferindo o padre das paróquias onde trabalhava para as funções de capelania.

D. Manuel Clemente justificou a sua inação dizendo que foi a própria vítima que não manifestou intenção de que o caso fosse tornado público e acrescentando que, como não houvera mais nenhuma queixa contra o sacerdote, o dever de prevenção de novos casos se encontrava assegurado. Ainda assim, o cardeal-patriarca de Lisboa admitiu que o caso tinha sido tratado no passado segundo padrões que já não correspondem aos que atualmente devem ser implementados.

O caso foi, mais recentemente, comunicado à comissão independente que está a investigar a história dos abusos de menores em Portugal. Foi aquele organismo, liderado por Pedro Strecht, que fez chegar o nome do padre à Polícia Judiciária — uma vez que o sacerdote ainda se encontrava em funções e que os membros da comissão consideram que o risco de reincidência deve fazer com que todos os casos passados que envolvam padres no ativo sejam comunicados à polícia.

Depois da notícia inicial do Observador sobre aquele caso, multiplicaram-se nos vários meios de comunicação portugueses várias notícias sobre o modo como D. Manuel Clemente tratou de denúncias de abusos no passado. A RTP noticiou que, em 2003, D. Manuel Clemente, à época bispo auxiliar de Lisboa e reitor do seminário dos Olivais, teria protegido um padre suspeito de abuso sexual de menores. Depois, o Expresso noticiou que um padre do Patriarcado de Lisboa terá entregado à comissão independente uma lista de 12 colegas seus — incluindo aquele a que a notícia da RTP se referia — sobre os quais existem suspeitas de abuso de menores e que também terão sido protegidos pela hierarquia da Igreja Católica, incluindo já no tempo de D. Manuel Clemente como patriarca de Lisboa.

As muitas notícias sobre o cardeal-patriarca de Lisboa culminaram, na semana passada, com a ida de D. Manual Clemente a Roma para um encontro pessoal com o Papa Francisco, o que fez aumentar a especulação em torno de uma possível renúncia do cardeal.

Na nota publicada esta terça-feira, o conselho presbiteral do Patriarcado de Lisboa faz ainda referência à Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus, publicada em agosto de 2018. Nesse documento, central para a análise do problema dos abusos na Igreja, o Papa Francisco disserta sobre o problema do clericalismo, uma subversão da lógica da autoridade pelo serviço (oriunda da génese do Cristianismo), transformando-a numa lógica de autoridade pelo poder (explicada pela evolução histórica da Igreja ao longo dos séculos), e classifica-o como a principal raiz da crise dos abusos e do encobrimento.

O clericalismo, nas palavras do Papa Francisco, reduz a Igreja a uma elite poderosa composta pelo clero, que detém uma autoridade inquestionável sobre os fiéis, em vez de apresentar a Igreja como o conjunto dos fiéis e os clérigos como ministros ao serviço dessa comunidade. “O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo”, escreve o Papa.

Vários autores têm também apontado o clericalismo como o fenómeno que explica a tendência da Igreja Católica para manter dentro dos limites das suas instituições o problema dos abusos, gerindo os casos internamente e somente através do direito canónico — o que não só consolida a autoridade interna das estruturas da Igreja como impede que a divulgação pública dos escândalos manche a imagem e a reputação da instituição.