O estilo bonacheirão com que deu uma entrevista de fundo com pompa e circunstância ao The New York Times durante a digressão do Barcelona pelos EUA mais não foi do que um prolongamento de uma nova era que o conjunto catalão atravessa depois de ter estado à beira da bancarrota há pouco mais de um ano. Até a indumentária escolhida para a recolha de imagens foi exemplo paradigmático, com Joan Laporta a vestir um blazer de classe tendo por baixo a camisola blaugrana. Nessa semana, em pleno Times Square, surgiu uma publicidade dos culé num dos ecrãs gigantes conhecidos por todo o mundo – e o líder sabe bem a importância do “saber vender-se”, ou não tivesse comprado um espaço na zona circundante ao Santiago Bernabéu, estádio do rival Real em Madrid, para colocar um outdoor seu durante as eleições dos catalães.

Como foi possível este autêntico “milagre” que virou por completo o paradigma e recolocou o Barça entre os principais candidatos à vitória na Liga espanhola e até na Champions? Quatro “alavancas”, como chama a imprensa espanhola. Isso e mais algumas manobras pouco comuns na instituição do “més que un club”.

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Comecemos por essa parte do financiamento que foi chegando a Camp Nou nos últimos meses. À beira do início do Campeonato (Rayo Vallecano em casa, no sábado), o Barcelona percebeu que teria de fazer pelo menos mais uma injeção de dinheiro para ver aprovadas as contas na Liga espanhola e inscrever todos os reforços garantidos para a nova temporada – sendo que dois nomes, Kessié e Christensen, corriam o risco de deixar os blaugrana depois de chegarem a custo zero. Assim, e no seguimento de negociações falhadas com a GDA Luma de Gabriel de Alba (proprietário do Cirque du Soleil), Joan Laporta vendeu mais 24,5% da Barça Studios, empresa que concentra tudo o que são produções audiovisuais do clube, por 100 milhões de euros à Orpheus Media, empresa administrada pelo fundador da Mediapro, Jaume Roures.

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“A Orphus Media tem uma extensa trajetória de criação de conteúdos audiovisuais. É um acordo que vai acelerar o crescimento de toda a estratégia digital, NFT e Web.3 do nosso clube”, justificou esta sexta-feira o Barça no comunicado que confirmou o negócio. Com uma nuance: a possibilidade de alienação de 49% do capital da Barça Studios (sem hipótese de recompra) tinha sido autorizada em Assembleia Geral pelos sócios delegados presentes na mesma, sem que fossem conhecidas as entidades que ficariam com essa parte da sociedade. Neste caso, Roures é uma pessoa já conhecido do universo blaugrana, tendo em conta que foi o empresário que deu aval para que Laporta se pudesse assumir como candidato e presidente.

Mas esta foi apenas a última de quatro alavancas acionadas em menos de dois meses que permitiram ao Barcelona garantiu 867 milhões de euros por venda de parte de sociedades ou receitas antecipadas.

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Alavanca 1. A 29 de junho, o Barcelona anunciou um acordo com a sociedade de investimento norte-americana Sixth Street Partners para a venda de 10% dos direitos televisivos nos próximos 25 anos a troco de 267 milhões de euros, dos quais 207,5 deram entrada direta para equilibrarem o fecho do exercício de 2021/22. Ou seja, se os catalães receberem 100 milhões de euros de TV por ano (neste caso, valor aleatório meramente figurativo) já sabem que dez milhões ficarão sempre para a Sixth Street Partners até 2047.

Alavanca 2. A 22 de julho, apenas três semanas depois dessa operação, os mesmos dois protagonistas fecharam mais um acordo envolvendo de novo os direitos televisivos do Barcelona, neste caso com mais uma percentagem de 15% a ser alienada por 25 anos a troco de 400 milhões de euros (neste caso pago em tranches separadas). Ou seja, e tendo em conta que a Sixth Street Partners já tinha 10%, isso significa que, até 2047, 25% das receitas televisivas dos catalães vão diretamente para a sociedade norte-americana.

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Alavancas 3 e 4. A 1 de agosto, uma semana depois dessa segunda parte do acordo com a Sixth Street Partners, Joan Laporta vendeu a primeira parte da Barça Studios, neste caso à Socios.com, recebendo 100 milhões de euros por 24,5% da sociedade, o mesmo valor que foi agora acordado na alienação dos 24,5% restantes aprovados pela Assembleia Geral de associados à Orphus Media de Jaume Roures. Ou seja, em quatro operações em menos de dois meses, os blaugrana asseguraram mais de 850 milhões de euros. Em paralelo, o Barcelona fechou um acordo com a Spotify para naming do estádio Camp Nou e patrocínio dos equipamentos principais e de treino das equipas masculina e feminina de futebol por um valor de 57,5 milhões por temporada ao longo de quatro anos com vários bónus incluídos nesse mesmo negócio.

Ainda assim, nem mesmo este jackpot que para muitos hipoteca o futuro caso a estratégia não venha a ter sucesso resolve todos os problemas e esse é o outro lado que Laporta tenta ainda “desbloquear”.

Logo à cabeça, a questão da redução dos salários. Devido à atual folha salarial, que contempla ainda alguns elementos que não entram nas contas de Xavi Hernández, o presidente catalão abordou pelo menos dois jogadores para que pudessem baixar o seu salário, neste caso os dois capitães e jogadores com mais anos de casa e que já tinham sido alvo de cortes no passado recente: o central Gerard Piqué e o médio Sergio Busquets. E tudo aponta para que isso possa mesmo acontecer, continuando assim no plantel.

No caso de Frenkie de Jong, aí, as coisas foram bem diferentes e chegaram mesmo a um limite depois de uma recusa inicial do médio em rumar ao Manchester United agora treinado pelo compatriota Erik ten Hag: após negar a possibilidade de descer pelo menos um terço (o ideal seria metade) o atual ordenado no clube, o The Athletic deu conta de um movimento surpresa do próprio Barcelona, que enviou uma carta ao jogador e aos advogados dizendo que o seu contrato entretanto renovado é ilegal e, como tal, terá de aceitar receber o salário que tinha quando chegou em 2019. Questão: De Jong prolongou o vínculo até 2026 para poder receber menos em 2020/21 e 2021/22, e assim ajudar o clube numa fase mais complicada, e ser ressarcido desses mesmos valores mais tarde. O caso mantém-se ainda sem desenvolvimentos mas os representantes do médio já explicaram que o neerlandês quer apenas permanecer em Camp Nou.

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Percebe-se entretanto que esse litígio acabou por chegar aos adeptos, que já mostraram animosidade pelo jogador nas últimas semanas à semelhança do que aconteceu com o avançado Martin Braithwaite, que não entra nas contas de Xavi Hernández, tem mais dois anos de contrato mas pretende receber esse valor em caso de rescisão – e no caso do dinamarquês ouviram-se mesmo assobios no jogo com o Pumas. A situação de Depay também está por solucionar mas neste caso o neerlandês admite sair para outro clube.