Houve lágrimas, gritos, cânticos e dança do povo que saiu à rua para receber o corpo de José Eduardo dos Santos. E silêncio. E ausências notórias.
Com um bandeira de Angola a cobrir o caixão e várias coroas de flores brancas, os restos mortais do ex-Presidente angolano chegaram a Luanda 43 dias após a sua morte. Eram 19h16 e o mesmo avião da TAAG, a companhia aérea angolana, trouxe alguns dos familiares que se encontravam em Barcelona.
Ana Paula dos Santos desceu vestida de preto tal como os três filhos do casal, Danilo, Joseana e Breno (que trazia nas mãos um retrato do pai em tamanho A3, tal como um outra familiar levava também uma fotografia maior emoldurada) e algumas sobrinhas.
Marta dos Santos, a irmã do antigo Presidente também chegou de Barcelona mas não se viu o irmão Luís, nem os outros quatro filhos que têm estado em Espanha: “Tchizé”e Isabel dos Santos já tinham dito que não estariam presentes no funeral do pai, mas nem “Coréon Dú” nem Joess ali estiveram. O outro filho que tem estado sempre em Luanda, Zénu, também não apareceu no aeroporto.
Fotogaleria. A viagem do corpo de José Eduardo dos Santos até Luanda em imagens
“Não estão, mas estamos nós, o povo que o ama”, disse depois ao Observador Gabriela Pinto, uma de cerca de uma centena de angolanos que estavam fora do aeroporto, à espera. “Ele é o nosso pai, ele é a nossa família”, continuou, de lágrimas nos olhos.
Caixão não foi levado por nenhum familiar e Tchizé não gostou: “Bando de macacos”
A família que veio no avião foi recebida por vários ministros e algumas individualidades, não tendo sido os filhos ou militares a retirar o caixão da ponte rolante que saiu do porão e transportá-lo dois ou três metros até ao carro fúnebre, o que já enfureceu Tchizé dos Santos.
Numa gravação que partilhou no WhatsApp a ex-deputada do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) diz que o objetivo de João Lourenço é “humilhar e abandalhar” José Eduardo dos Santos:
“Onde é que já se viu um antigo comandante em chefe, um general de três estrelas [ajudar a levar o caixão]? Não há oficiais para pegar o caixão? (…)” pergunta.
Depois de comentar o facto de haver sobrinhos entre o grupo que chegou de Barcelona “que só servem para aparecer nas fotografias”, critica os irmãos: “Filhos não sabem pegar e transportar o caixão do pai? Bando de macacos.(…) Vão-se arrepender amargamente, vão chorar, porque o objetivo de João Lourenço era rir, era pôr o caixão de José Eduardo dos Santos para poder humilhá-lo, mostrar a cabeça do rei morto, para mostrar ao povo que é o rei absoluto e rir. Usou-vos a todos! (…)” continuou.
E termina a gravação nomeando mesmo os irmãos: “Joseana, Breno e Danilo, vocês vão chorar baba e ranho, vão ser abandalhados. Onde é que já se viu um ex-Chefe de Estado chegar ao país e não ter um protocolo para pegar as flores? Bandalheira.”
A falta de uma guarda de honra também surpreendeu Jacinto Flores, “um angolano vulgar” que decidira ir prestar uma homenagem “ao homem que tanto deu a este país, apesar dos seus erros”, confessou ao Observador, fora do aeroporto. “Os militares espanhóis estavam lá, na saída do corpo de Barcelona mas aqui não…”, comentou.
E não foi por falta de militares no aeroporto 4 de fevereiro. Numa primeira fase até estava previsto que o avião aterraria na pista militar e os jornalistas foram dirigidos para essa saída. Mas depois a tropa foi mandada embora e os jornalistas encaminhados para a pista internacional.
Especialistas que prepararam o corpo de Nelson Mandela vão cuidar do de José Eduardo dos Santos
Assim que o corpo foi depositado no carro funerário após um curto período de silêncio, Marcy Lopes, ministro da Administração do Território de Angola que é também o porta-voz da Comissão das Exéquias Fúnebres, deu uma breve conferência de imprensa. “Chegou a família e o Presidente José Eduardo dos Santos a Angola, após um longo período de espera”, afirmou, antes de explicar que o corpo ficará com a família até ao dia da cerimónia oficial.
Marcy Lopes não referiu a data do funeral, dizendo apenas que será comunicada em tempo oportuno, apesar de fonte do MPLA ter adiantado ao Observador que seria no dia 28. Também no final do grande comício do partido em Luanda, o último da campanha, que juntou milhares de pessoas, o porta-voz do MPLA, Rui Pinto de Andrade, admitiu aos jornalistas que o funeral será “provavelmente” em Luanda no próximo dia 28, data em que José Eduardo dos Santos faria 80 anos.
“Os próximos dias serão reservados para o tratamento de questões administrativas e protocolares inerentes a um processo como este que carece de ser tratado com toda a atenção até ao dia das exéquias fúnebres que iremos comunicar atempadamente”, explicou o governante.
Foi já na residência de José Eduardo dos Santos em Luanda, uma mansão com vista para o mar, no bairro Miramar, que Francisco Furtado, o chefe da Casa de Segurança, deu mais alguns pormenores. A um pequeno grupo de jornalistas explicou que o “programa da cerimónia será feito em função da preparação do corpo por dois especialistas vindos da África do Sul, os mesmos que prepararam o corpo de Nelson Mandela, juntamente com dois angolanos”.
O também ministro de Estado esclareceu que José Eduardo dos Santos não será enterrado, mas ficará num jazigo, numa área junto ao mausoléu onde está o primeiro Presidente angolano, Agostinho Neto. Esse espaço que o ministro tem classificado informalmente como “Panteão Nacional”, servirá não só para jazigos de futuros Presidentes, como também para “pessoas que tenham praticado atos relevantes em prol do país e da nação”.
A vez do povo e a voz das zungueiras
Do aeroporto para Miramar, o cortejo fúnebre, que incluía vários carros com ministros, escoltado pela polícia em muitas motorizadas, passou pela grande avenida Ho Chi Minh onde muitas pessoas estavam batendo palmas e repetindo o que uma mulher, à saída do aeroporto já dizia, a chorar, e amparada por uma amiga: “Zédu chegou”.
A mesma frase se ouviu à chegada a Miramar, onde muitos angolanos enchiam os passeios e gritavam frases como “Presidente amigo, o povo está contigo”, “Zédu, meu Presidente, meu pai”, cantavam e choravam.
Os que se deslocaram para ali, acabariam mais tarde por poder entrar na mansão e prestar a sua homenagem ao ex- Presidente, cujo corpo foi colocado no jango que está no jardim da “Casa Amarela”.
Foi aí que Ana Paula dos Santos, os três filhos e nora e genro, e mais dois ou três familiares, velaram o corpo do ex-estadista. Ao lado, no campo de basquetebol onde José Eduardo dos Santos gostava de encestar, tinha sido montada uma estrutura com cadeiras onde muitos ministros se sentaram, de frente para o jango, acompanhando a curta cerimónia religiosa. Um padre aspergiu água benta no caixão e disse algumas palavras de pesar, lembrando a fragilidade da vida humana:
“Irmãos, irmãs. A morte do nosso querido irmão José Eduardo dos Santos enche-nos de tristeza e recorda-nos como é frágil e breve a vida do homem, mas neste momento de tribulação conforta-nos a nossa fé. Cristo vive eternamente e o seu amor é mais forte do que a morte”. Seguiu-se a oração do Pai Nosso, antes de alguns amigos e as entidades oficiais apresentarem as suas condolências e se retirarem.
Chegou então a vez “de o povo entrar”, como dizia um dos polícias no local. Em fila, duas centenas e meia de pessoas esperaram tranquilamente pela sua vez de ir até ao jango. Entraram em pequenos grupos, não mais de dez pessoas, depois de colocarem os seus pertences na máquina de raio x, receberem uma máscara, desinfetarem as mãos e passarem num portal desinfetante.
A maioria das pessoas chegava, inclinava-se perante a urna ou a fotografia, cumprimentava com a cabeça a família e saía em silêncio. Só um ou outro grupo foi mais expressivo a manifestar a sua dor, chorando alto e dizendo: “Meu Presidente, meu Presidente”.
Um deles foi o de cinco zungueiras (vendedoras ambulantes) que prantearam mesmo José Eduardo dos Santos com gritos cantados e choro até que, já na rua, ergueram ainda mais alto as suas vozes e juntaram-lhe uma coreografia de luto.
Presidente é preso por ter cão e por não ter cão?
João Lourenço, que teve este sábado um gigantesco comício na zona da Camama, onde não referiu, de todo, a chegada dos restos mortais do seu antecessor não esteve nem no aeroporto, nem no velório. “Estão sempre a acusar o Presidente de querer usar o corpo como trunfo político, criticando o facto de ter chegado praticamente em cima do dia das eleições, e agora estão a comentar que ele não está cá?”, indignava-se um militante encostado a um dos muros altos da mansão com quem o Observador falou. “Mas o homem é preso por ter cão e por não ter? Ele lá tem as suas razões”.
No final do comício em Luanda, Rui Pinto de Andrade já tinha recusado qualquer uso eleitoral do momento. “Se quiséssemos fazer aproveitamento político faríamos agora, esta mole humana que está aqui respeita o José Eduardo dos Santos como sempre respeitou”, disse o secretário para a Informação do MPLA aos jornalistas apontando a multidão de militantes que hoje se deslocaram ao recinto do Camama para ouvir João Lourenço que, optou no seu discurso, por não fazer qualquer referência ao seu antecessor no cargo.
“Quem não respeita é a família”, acrescentou. Já antes, o porta-voz do partido tinha criticado indiretamente as filhas Isabel e Tchizé. “As filhas andaram distraídas (…) estavam na praia, estavam a fazer desfiles de moda, etc,”, respondeu quando os jornalistas o questionaram pelo facto de os filhos mais velhos do ex-Presidente se terem queixado de não terem sido avisados de que o tribunal catalão autorizara a transladação do corpo para Luanda e de não se terem podido despedir do pai em Barcelona.