O Tribunal Constitucional (TC) de Angola deu razão aos argumentos da defesa de José Filomeno dos Santos e considerou inconstitucional o acórdão em que o filho de José Eduardo dos Santos foi condenado pelo desvio para o estrangeiro de 500 milhões de dólares (mais de 463 milhões de euros ao câmbio atual) do Banco Nacional de Angola (BNA).

Também conhecido como “Zénu”, José Filomeno dos Santos, ex-presidente do Fundo Soberano de Angola, recebeu, em segunda instância, em agosto de 2020, do Tribunal Supremo de Angola (TSA), uma pena de prisão de cinco anos pela “prática dos crimes de peculato, burla por defraudação e tráfico de influência”. Recorreu da decisão para o Tribunal Constitucional em 2022, tal como os outros três condenados, Valter da Silva, então presidente do BNA, Jorge Gaudens Sebastião, empresário e amigo de infância de “Zénu”, e António Bule Manuel, diretor do BNA, todos igualmente sentenciados a penas de prisão: oito, seis e cinco anos, respetivamente.

“Zenu”, filho de José Eduardo dos Santos, condenado a cinco anos de prisão em caso “500 milhões”

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E o TC, numa rara decisão (que pode ler aqui na íntegra) em Angola, “chumbou” o acordão do TSA, declarando-o inconstitucional “por violação dos princípios da legalidade, do contraditório, do julgamento justo e conforme com o direito à defesa”. 

Entre os vários argumentos dos dez juízes conselheiros do TC que assinam o acórdão, esta quinta-feira divulgado, está a não aceitação de “prova documental relevante”. Referem-se assim a uma carta escrita por José Eduardo dos Santos em resposta a um questionário enviado pelo Tribunal Supremo. Nesse documento, o antigo Chefe do Estado angolano confirmava ter dado ordens, por escrito, para a transferência irregular dos 500 milhões de dólares ao antigo governador do Banco Nacional de Angola, Valter Filipe, garantindo que tudo fora feito “no interesse público”.

Mas, diz o TC, da parte do TSA houve um  “desconsideração” da resposta de José Eduardo dos Santos, desvalorizando-a, por considerar que não tinham sido cumpridos os requisitos de autenticação da assinatura do declarante, nem mesmo o procedimento legal de envio, quando foi o próprio tribunal que estabeleceu a forma como seria remetida.

“Por não ter sido admitida a carta-resposta do antigo Presidente da República, o acórdão violou os princípios da presunção de inocência e do contraditório, bem como o direito à defesa” tal como “o direito a um julgamento justo e conforme”, pode ler-se na decisão do TC.

O plenário dos juízes decidiu assim que “o recurso procede, devendo os autos baixar às instâncias devidas “para que sejam expurgadas as inconstitucionalidades verificadas”.

E agora? O julgamento vai ser repetido?

Resta saber agora que consequências práticas tem este acórdão. O julgamento será repetido? As penas de prisão e de multas serão revistas? A condenação será levantada? O problema é que “o Tribunal Constitucional ficou a meio termo”, lamenta o jurista angolano Daniel Sambeu Pequena ao Observador.  “Apesar de ter declarado que o julgamento não foi justo e que foram violados direitos fundamentais, não anulou totalmente a decisão do TSA”, refere o advogado. “Tinha ‘uma batata quente’ na mão e passou-a de volta para o Supremo”, sustenta.

E a grande questão, continua o jurista, está precisamente na resposta que José Eduardo dos Santos enviou ao Tribunal e que não foi aceite. Se “expurgar a inconstitucionalidade deste ato significa aceitar a carta do ex-Presidente, isso pode alterar completamente o sentido da condenação e levar mesmo a uma absolvição não só de ‘Zénu’ como dos outros três condenados”, sublinha.

Na verdade, José Eduardo dos Santos chamava a si a responsabilidade da movimentação das verbas, logo os quatro condenados “agiram no cumprimento de ordens, de instruções, de alguém, no caso, no então Presidente da República”.

Por outro lado, a possibilidade de aceitar a carta mas não valorizar o seu conteúdo, pode criar “um paradoxo”, avisa. “O TSA não pode agora dizer que o sustentado nesse ofício não corresponde aos factos, que o conteúdo não faz jus à verdade, pois José Eduardo dos Santos morreu em julho de 2022… O Tribunal teve tempo para aferir da veracidade dessa carta e não o fez em vida do ex-Presidente”. Aliás, acrescenta Daniel Sambeu Pequena, “isso só levaria a um novo recurso para o TC”.

Por isso, defende o jurista, o “acórdão deixa implícito um novo julgamento”.

Em Angola o Tribunal Constitucional controla a constitucionalidade de quaisquer atos dos outros poderes (administrativos e jurisdicionais) e não apenas dos legislativos e normativos como acontece em Portugal.

“Zénu”, o único filho a sentar-se no banco dos réus e a ficar na prisão

José Filomeno dos Santos foi, até agora, o único filho de José Eduardo dos Santos a sentar-se no banco dos réus e a passar seis meses em prisão preventiva. O julgamento começou em 2019 quando o pai já estava a viver em Barcelona, tendo recebido a notícia como “um murro na cara”, contou ao Observador uma fonte próxima da família.

“Zénu” fora acusado e detido pelo Ministério Público em setembro de 2018 no famoso “caso dos 500 milhões”. Segundo a acusação, o filho de José Eduardo dos Santos que, sob nomeação do pai, liderava o Fundo Soberano de Angola desde 2012, autorizara a transferência, a que o então ministro da Economia se opusera, das verbas do BNA para uma conta do banco HSBC, em Londres.

Esse dinheiro iria para um consórcio de empresas constituído fora de Angola que incluía, por exemplo a Mais Financial Services, do amigo de infância Jorge Gaudens e serviria para concretizar uma ideia que “Zénu” apresentara ao pai: a criação de um fundo de investimento estratégico para atrair investidores estrangeiros para Angola. Durante o julgamento, explicou que como o plano não se encaixava nas competências do Fundo Soberano levou o assunto ao governo tendo participado em várias reuniões face à sua experiência naqueles tipos de contratos.

Mas nem a sua explicação, nem o assumir de responsabilidades por parte de José Eduardo dos Santos, nem o facto de a maioria das verbas ter sido recuperada ainda antes da sua detenção, convenceram o tribunal.

Condenado, e apesar de ter recorrido para o TC em 2022, “Zénu” não foi autorizado a viajar para Espanha, quando o pai foi internado numa clínica em junho em Barcelona, acabando por morrer em julho.