Enquanto os turistas perdem tempo à porta do Ramiro, há muito que nós, os que conhecemos a cidade, vamos a outros sítios, como o Relento (em Algés, agora fechado, sabe Deus até quando) ou ao Nunes Real Marisqueira, pertíssimo do CCB. Numa fase diferente da minha vida, há quase vinte anos, o avô levava-me lá uma vez por outra e lembro-me que à chegada, os dois sentados numa mesa próxima da montra, o avô baixava o tom de voz e repetia-me uma história. Tornou-se um prenúncio da refeição que aprendi a antecipar com excitação. Supostamente, dizia o avô, o Nunes nascera de uma dissidência do Relento e desde então que aquele pequeno mistério me intrigou. Nunca soube se é verdade ou se o avô  repetia o que ouvira a terceiros, mas sei que passei a associar segredos e mistérios às marisqueiras e mantenho que muita coisa terá acontecido nas cervejeiras e marisqueiras de Portugal, je suis certaine, fosse nos almoços ao domingo a seguir a receber o ordenado; no petisco tardio depois de o Benfica ter ganho um jogo na Champions; ou simplesmente quando homens adultos partilham sapateira, camarão, des huitres, bruxas ou tantas outras coisas deliciosas do mar.

No princípio de agosto descobri que o Nunes fechara e quase tive um chilique. Felizmente, percebi que a umas dezenas de metros de distância abriu um novo, na direção de Algés, onde calhou ir poucos dias depois da inauguração.

Vendo o novo Nunes da rua, nem parece que estamos prestes a entrar numa marisqueira a la portugaise. A entrada envidraçada, com pretos e dourados, é um pouco inesperada e recorda o que algumas sapatarias da Baixa lisboeta antigas costumavam escolher para as fachadas. Só quando metemos o pé lá dentro capacitamos que nada daquilo é igual ao que tenhamos visto. Dizer que é inesperado e espetacular, não é dizer o suficiente. Mon Dieu, parece que fomos teletransportados para um sonho psicadélico e estamos dentro da barriga de uma baleia.

Ainda atordoados, somos recebidos por hôtesses (mais atarefadas que simpáticas) que verificam a reserva e nos conduziram por um corredor com viveiros colossais de fruits de mer de um lado e um expositor de poisson frais em gelo do outro, que dá para uma grande cozinha aberta. Enormes estátuas brancas de elementos naturalistas, do tipo deuses e outras criaturas do mar (se percebi bem) dão um look Pop e ambicioso, com o chão muito decorativo a realçar os conjuntos (como escreveriam na Elle Deco, estou segura), tudo a acontecer junto à Torre de Belém, numa Lisbonne reconstruída a turismo e vistos gold. Todo o restaurante é uma cornucópia de motivos marítimos e linhas art déco, onde o design retro (com vigias redondas e tudo) e uma certa opulência esfregam com vigor “este é o novo Nunes e nada tem a ver com o antigo” na cara do visitante. Naqueles poucos minutos, enquanto ia para a mesa, uma intensa sensação de familiaridade acompanhou-me. Parecia que lá tinha estado antes e foi só mais tarde que me veio à memória a montanha russa do peixinho Nemo que existe na Disneyland Paris, onde andei mais vezes do que queria, consequência de se viver em Paris e haver uma Disneyland à porta. Quem lá esteve, vai perceber.

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Antes sequer de termos trincado um camarão, enchemos a barriga com aquele conceito, cujos particulares vamos reparando a pouco e pouco. Os motivos de decoração, do mobiliário aos balcões, o chão, as paredes, as toilettes, os lustres, até o lettering nos menus têm total coerência e sofisticação e não via tanta no mesmo local desde a última vez que estive em Bruxelas. As mesas e os sofás são convidativos, muitas recortadas em pequenos privados confortáveis, por onde os empregados serpenteiam, como nos clubes de jazz dos filmes americanos dos bon vieux temps, em que toda a gente fumava e homens de smoking branco com brilhantina lutavam pela atenção da mulher bonita com luvas até ao cotovelo.

Um emmerdeur protestará que o antigo Nunes era autêntico, mas isso seria igual a dizer que é uma pena que já não exista a oficina onde a maman metia o Ford Fiesta azul e escutava o mecânico a dizer que na melhor das hipóteses só na semana seguinte é que ia dar uma olhada.

Por causa da bondade do avô, desde cedo aceitei que as cervejarias e marisqueiras são um território masculino, onde os homens levam as mulheres da sua vida. O marisco é um assunto muito sério num país com este mar e os assuntos sérios são para ser resolvidos por homens. Estou a brincar, naturalmente, mas reparem como, nas marisqueiras, são eles quem entende de camarão, discute a frescura dos percebes, troca provocações com os empregados ou faz sinal para mandar vir mais cerveja. Por mim, parfait, desde que paguem a conta, quem sabe às mulheres caiba seulement molhar o pão nas ameijoas à Bulhão Pato (25 euros, probablement a minha comida favorita) ou fazer companhia num prego do lombo (14 euros) no final da refeição.

Desta vez, e porque a minha companhia insistiu, comemos uma das especialidades da casa, a garoupa no forno com batatas (26 euros), que nos foi servida diretamente nos pratos e não numa travessa, como a iguaria, o restaurante e o preço mereciam. Quelle domage. Pode ser um petit problem de soft opening, espero que sim. De qualquer modo, a garoupa é feita ao momento (avisam-nos) e os sabores estavam excelentes, ainda que a tranche fosse pequena.

No princípio, comemos umas gambas ao sal, cozidas no momento (72 euros o quilo, diz na carta online), servidas num prato moderno, daqueles usados nos restaurantes mais en vogue na Quinta do Lago, entretidas com pão torrado com manteiga (2,10 euros), enquanto observámos à descarada uma tábua gigante cheia de mariscos que os comensais do lado fotografavam antes de comer. Tive pena de não ter pedido o bisque de marisco em massa folhada (12 euros), homenagem assumida ao Chef Bocuse, e tenho sonhado com ela desde esse dia. Bebemos sempre cerveja, apesar de termos visto uma enorme garrafeira prometedora à entrada. Por falar nisso, junto dessa caverna do Ali Babá, está um pequeno expositor com merchandising (como há tantas na Disneyland, et pour cause), com fardas, réplicas do peixe Tobias (uma private joke do Nunes) ou umas sapatilhas Sagres Nunes (imaginem as Adidas Stan Smith com uma santola dourada se forem capazes). Quem comprará aquelas coisas, não imagino, mas não critico.

No novo Nunes, que tem muitos mais lugares sentados que o outro, não se vê um televisor a dar futebol em lado nenhum e é conveniente marcar. Situado na Rua Bartolomeu Dias, numa antiga serração, em frente ao hotel palácio do Governador, nunca foi barato e assim prossegue. Como sempre, os empregados antigos tratam bem os habituais e são mais distraídos com os outros, com os novos ainda um pouco atrapalhados no meio daquela confusão. Talvez não seja má ideia a gerência explicar ao staff quem decorou o espaço ou quais as referências do novo Nunes. Perguntamos a dois empregados de quem era a obra — que não estaria mal no Dubai ou em Vegas — e eles não só não faziam ideia, como lhes pareceu uma pergunta improvável, numa falta de curiosidade sobre o seu local de trabalho que me deixou irritada. Se há coisa que me farto de fazer em Paris é explicar que os portugueses servem para muito mais do que para concierges ou, dans le moment, jogadores de futebol do PSG e estas indiferenças perante as suas próprias coisas não ajudam nada.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.