Está a circular nas redes sociais um email aparentemente com origem na Divisão de Investigação Criminal do Comando Metropolitano de Lisboa que proíbe os agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) de utilizarem armas de fogo com projétil letal — ou, sequer, a retirá-las do coldre — em situações de desordem pública. Segundo o mesmo email, os agentes à civil também não podem intervir em episódios semelhantes, sob pena de serem alvo de processos disciplinares.

O documento, que tem circulado em grupos de WhatsApp de que fazem parte agentes da autoridade, e que já foi partilhado por alguns movimentos políticos no Facebook, indica que a informação em causa teve origem numa determinação do diretor nacional da PSP, Manuel Augusto Magina da Silva, e que foi remetida pela secção de operações por decisão da comandante da Divisão de Investigação Criminal, a intendente Catarina Franco.

Em declarações ao Observador, fonte oficial da PSP nunca esclarece cabalmente a veracidade do documento — isto é, se o email em causa foi efetivamente difundido internamente por responsáveis da PSP ou se não passa de uma criação falsa que circula na internet. Mas admite que as informações que lá surgem traduzem, ainda que “de forma simplista e desenquadrada”, as instruções operacionais prestadas por Magina da Silva numa reunião de coordenação habitual com todos os comandantes e diretores da PSP.

Ao Observador, a polícia recusou-se a prestar “comentários adicionais” sobre o assunto. Mas, esta segunda-feira, 3 de outubro, o diretor nacional enviou um esclarecimento interno, que apelou para que se mantivesse reservado aos membros da PSP, e que dava orientações sobre o “recurso a armas de fogo com projéteis letais em alterações da ordem pública com muitos intervenientes”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E não só esclareceu a origem destas informações, que afinal já foram comunicadas há quase um ano, como admite que o email “aparentemente” enviado da Divisão de Investigação Criminal do Comando Metropolitano de Lisboa pode transparecer “dúvidas resultantes de eventuais interpretações erradas ou de opiniões mais ou menos especulativas sobre um assunto tão importante”.

Por o email em questão traduzir as instruções (por mim dadas em dezembro de 2021), de uma forma demasiado simplista e desenquadrada, e por se tratar de uma matéria nuclear e de extrema importância, dado os valores envolvidos, para a prossecução da nossa missão (uso da força com recurso a meios de elevada potencialidade letal), com implicações legais potencialmente gravosas para todos os polícias, cumprindo com a frontalidade e lealdade que vos prometi, optei por vos remeter o presente ‘DN informa’“, justifica Magina da Silva na circular a que o Observador teve acesso.

Ordem existiu. Mas aplicava-se a “operações planeadas” com “grandes dispositivos”

O diretor nacional da PSP sublinha, no mais recente documento, que as instruções em causa — partilhadas há um ano — aplicavam-se apenas a situações de “execução de operações planeadas que envolvem grandes dispositivos policiais, nomeadamente em contexto de policiamentos desportivos e de manifestações”. E que foram tomadas na sequência de dois incidentes: um a 17 de outubro de 2021, no estádio do Olímpico do Montijo, onde a equipa da casa jogava contra o Vitória de Setúbal B; e outro a 8 de dezembro do mesmo ano, em confrontos na via pública antes de um jogo da Liga dos Campeões em Lisboa.

Nas ruas do Montijo, um dia depois do “faroeste” em campo. “Não queremos ser vistos como arruaceiros”

Na primeira situação, os agentes da PSP destacados para o jogo entre o Olímpico do Montijo e o Vitória de Setúbal B dispararam para o ar para “cessar a desordem e as agressões” entre jogadores e adeptos que invadiram o campo; “e repor a ordem pública no recinto desportivo”, como consta no comunicado lançado posteriormente pelas autoridades. À época, a PSP abriu um inquérito disciplinar para “averiguar se os recursos a arma de fogo cumpriram com a legislação e regulamentação interna aplicáveis”.

No segundo episódio, os agentes da polícia também dispararam para o ar na tentativa de dispersar os confrontos entre adeptos do Benfica e do Dínamo de Kiev, que iriam disputar a sexta jornada da fase de grupos para a Liga dos Campeões naquele dia. Na altura, a PSP também confirmou que “teve necessidade de intervir nos confrontos e foi necessário efetuar disparos para o ar”, uma vez que os agentes foram “recebidos com o arremesso de pedras, garrafas ou tochas”. Cinquenta e quatro pessoas foram detidas por “participação em rixa”. Em ambos os casos foram utilizadas pistolas Glock, com munições com projéteis letais de calibre 9 milímetros.

Uso de arma em jogos? Só em caso de “agressões”. Diretor nacional pede “reserva”

Quais são então as regras? De acordo com o documento a que o Observador teve acesso, e sobre o qual o diretor nacional pediu “reserva”, estas são as ordens da direção nacional da PSP:

  • As intervenções policiais para reposição da ordem pública, nomeadamente em contexto de grandes dispositivos policiais (por exemplo, em eventos desportivos ou manifestações), só devem ser executadas por agentes devidamente preparados das Equipas de Intervenção Rápida ou do Corpo de Intervenção. O pessoal à civil nunca poderá intervir, nem mesmo se pertencer a estas unidades. E tudo isto também é válido em casos de “ocorrências inopinadas”, indica a circular interna.
  • As intervenções policiais em casos de desordens com muitos intervenientes devem ocorrer apenas à ordem do comandante tático, com pessoal das Equipas de Intervenção Rápida ou do Corpo de Intervenção, e “evitando-se as iniciativas individuais potencialmente espoletadoras de males maiores dos que os visam evitar“.
  • Em “situações de reposição da ordem pública”, nomeadamente em eventos desportivos e manifestações, “não é admissível, por força do quadro legal e dos normativos vigentes, qualquer recurso a arma de fogo, com munições com projéteis letais, o que se torna dificilmente defensável do ponto de vista jurídico-legal em sede de escrutínio formal, exceto em situações limite em que estejam em curso agressões que, de forma inequívoca e grave, coloquem em risco a vida ou a integridade física, própria ou de terceiros, nomeadamente cometidas com armas brancas ou de fogo”.

Tal como a PSP indicou ao Observador, o recurso a armas de fogo em ações policiais é regulamentado pelo Decreto-Lei nº 457/99 de 5 de novembro, que aponta que elas só podem ser utilizadas “em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias” e “se for manifestamente improvável que, além do visado ou visados, alguma outra pessoa venha a ser atingida”. A utilização destas armas deve ser ordenada diretamente pelo comando da força policial ou então “perante circunstâncias absolutamente impeditivas de aguardar por aquelas ordens ou instruções”.

Também se aplica a Norma de Execução Permanente (NEP) sobre os “limites ao uso de meios coercivos”, que foi atualizada a 15 de dezembro — uma semana depois do segundo episódio que Magina da Silva mencionou no esclarecimento que enviou esta segunda-feira aos membros da PSP. À luz desta norma, “deve ser sempre utilizado o menor nível de força em regra adequado” para alcançar o objetivo em causa: um nível de força superior só pode ser aplicado se o nível imediatamente inferior se provar “ineficaz” — algo que já se aplicava antes da atualização do ano passado.

Mas a nova versão desta norma contém um ponto que Magina da Silva também destacou no esclarecimento enviado aos polícias esta semana: depois dos incidentes no Montijo e na Luz, a direção nacional determinou que, “em contextos de reposição da ordem pública com muitos intervenientes, é expressamente proibido qualquer recurso a arma de fogo“, exceto quando o agressor “tentar executar ou já tiver executado agressão com arma de fogo” e se utilizar armas que, não sendo de fogo, lhe dotam de “manifesta capacidade para inequivocamente colocar em risco a integridade física ou a vida do polícia ou de terceiros”.

Estas regras estão todas observadas nas ordens que o diretor nacional da PSP esclareceu internamente há dois dias. Mas não estavam no email que parece ter saído da Divisão de Investigação Criminal do Comando Metropolitano de Lisboa. Sobre o motivo desta aparente falha de comunicação, a polícia continua sem responder ao Observador.