Ucraniano, lutador de boxe, campeão mundial e pessoa capaz de prender uma plateia só a contar histórias do passado na Web Summit? Check, já houve. Se recuarmos a 2019, Wladimir Klitschko esteve na parte da manhã do primeiro dia completo do evento no palco do Sports Trade. E se recuarmos aos minutos iniciais da sua intervenção, colocando o que disse em contexto, percebemos como as coisas podem mudar.
Wladimir Klitschko, o ex-campeão olímpico e mundial que se reinventou a pensar ser de novo campeão
“Não sou um empresário, sou uma pessoa que gosta de desafios. Quem não aceita os desafios, desculpem lá, é um cobarde, desculpem que vos diga… Temos de dar sempre a cara. Como atleta, ao longo de três décadas, aprendi que há princípios que nos ensinam em tudo. No desporto, na política, na sociedade. Agilidade, capacidade, fé. Muita fé. E agora vou ter de acabar um bocado este monólogo que estou a ter porque não vos quero não pôr a dormir, já basta o que fiz a alguns dos meus adversários…”.
Wladimir, o irmão mais novo da dupla Klitschko que dominou o boxe mundial durante anos a fio, estava nessa altura num ponto alto da sua vida pós-desportista mas a não descurar um possível regresso para ser campeão e bater o recorde de George Foreman, que alcançou o último título de pesos pesados com 45 anos. A partir de 24 de fevereiro, tudo mudou. Para Wladimir, que voltou por razões que não queria à terra natal. Para o irmão mais velho Vitali, presidente da câmara de Kiev que está no epicentro de um combate bem mais difícil e cruel do que todos os que estava habituado a fazer enquanto desportista. Para Oleksandr Usyk, campeão olímpico, mundial e europeu de boxe que manteve o legado dos Klitschko no desporto.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, o pugilista de 35 anos estava em Londres a preparar o combate com o inglês Anthony Joshua pelos títulos WBA (Super), IBF, WBO e IBO, ao mesmo tempo que preparava alguns vídeos para o lançamento de um jogo. Já tinha ganho em setembro de 2021, preparava-se para tentar ganhar também na desforra marcada para setembro deste ano na Arábia Saudita (como viria a acontecer e com novo triunfo). No entanto, e durante algumas semanas, Usyk voltou ao seu país, vestiu o camuflado e juntou-se ao exército ucraniano com outras figuras no ativo do desporto. “Não sei quando voltarei porque o meu país e a minha honra são mais importantes do que um cinto de campeão”, explicou na altura, em resposta a todas as dúvidas que se levantavam sobre o futuro.
“Matar alguém? Se me quiserem matar a mim ou a alguém próximo de mim, terei de fazê-lo. Mas eu não quero isso, não quero disparar, não quero matar ninguém. Se me quiserem matar, não terei escolha”, disse à CNN, com a ajuda do agente por não falar inglês, quando estava integrado num dos muitos grupos que faziam defesa territorial das cidades. Usyk tinha vôo marcado de regresso poucas horas depois do início do conflito, o que fez com que tivesse de viajar para Varsóvia e seguir de carro até Kiev num total de 800 quilómetros. “Talvez pareça muito sentimental mas a minha alma pertence ao Senhor e o meu corpo e a minha honra pertencem ao meu país, à minha família. Portanto, não tenho medo, não tenho medo algum. Tenho apenas perplexidade… Como é que isto pode acontecer no século XXI?”, acrescentou.
“No primeiro mês da guerra, perdi dez quilos mas quando comecei a preparar-me para este combate rapidamente ganhei peso e a minha equipa fez um trabalho incrível para fortalecer o meu corpo. Não quero falar muito sobre o peso mas o principal é que me sinto incrivelmente em forma e forte. Dá para ver isso no ginásio mas vou provar isso no ringue”, contou numa entrevista ao The Guardian, antes do combate com Joshua. Depois disso, voltou ainda à Ucrânia e esteve com vários grupos do exército a animar as tropas e a perceber o que lhes podia fazer falta. Agora, era um dos principais destaques na Web Summit, passando pela zona de conferências antes de receber o Web Summit Innovation Award para o desporto.
O impacto da presença mede-se apenas pela aparição. Com uma sweat e um fio ao pescoço, agradece a presença dos jornalistas e demais interessados na sala com um sorriso antes de uma primeira declaração precedida de tradução. “Somos ucranianos, todos devemos falar sobre o que está a acontecer no nosso país. Todos devemos e todos estamos a defender a nossa terra”, começa por dizer. “Nos últimos oito meses foi complicado estar concentrado na competição sabendo que existe uma guerra mas precisamos dos esforços de todos naquilo que mais podem ajudar. É isso que fazemos. O boxe é a minha missão para mostrar o que está a acontecer e juntar mais fundos. Essa é a minha forma de ajudar”, destaca, entre mais um reforço para a situação que a Ucrânia vive e que acaba por englobar tudo e todos: “Os líderes mundiais não perceberam ainda a natureza desta invasão, ele [Putin] não vai parar por ali”.
O discurso de Usyk é sempre pautado a dois níveis distintos. Por um lado, o reconhecimento de apoio que tem vindo de fora e que nunca será suficiente; por outro, a luta dos ucranianos pelo seu país. E esse foi o ponto principal em resposta ao Observador sobre as diferenças que encontra no país entre fevereiro e março e os dias que correm. “No início da guerra as pessoas não estavam preparadas. Não estavam nem podiam estar, claro. Não senti da parte dos desportistas que tenham agora voltado, eles nunca chegaram a sair apesar de terem retirado as suas famílias e pessoas mais próximas do país por uma questão de segurança. Não vamos desistir, não podemos voltar atrás e temos de continuar. Estive em Kiev, depois fui a Kherson e a Dnipro. Agora a grande diferença é que os mais novos que estão na guerra já sabem a diferença entre as bombas e os mísseis. Sabem o que fazer e não têm medo, vão à luta”, destaca.
“Se me permite, vou apenas acrescentar uma ideia em relação às diferenças oito meses depois: hoje, mais do que em fevereiro ou março, as pessoas têm 100% de certeza de que vão ganhar a guerra pela Ucrânia. E aproveito para dar um exemplo: nas reuniões que tenho com pessoas que estão no país, através de Zoom, hoje já conseguem pelo barulho quando os mísseis ou as bombas são perigosas. Antigamente, ao mínimo barulho, iam logo para o abrigo”, salientou ainda Maksym Liashko, CEO da Parimach Tech.