É bem provável que o primeiro ato artístico de Luísa Sequeira tenha acontecido numa das casas de banho de sua casa convertida num estúdio de revelação de fotografia improvisado. “Queria ser fotojornalista e quando tive a minha primeira máquina fotográfica fui para a rua fazer retratos a desconhecidos. Lembro-me de ficar com os dedos marcados de um líquido azul na revelação, nem sempre usava as pinças, queria fazer tudo com as mãos”, começa por contar ao Observador.
Natural do Porto, cidade que sempre viveu intensamente, foi em espaços como o Café Pinguim ou o bar Aniki Bobó que se reunia frequentemente para conversas e tertúlias. “Sou muito curiosa, acho que tudo o que faço vem daí. Nessa altura, como agora, queria viajar, contar histórias e pôr as mãos na massa.” Formou-se em jornalismo, fez Erasmus na Holanda e um estágio na televisão de Moçambique, foi aí que pegou pela primeira vez numa câmara de filmar e descobriu o poder da imagem viva.
O gosto pelo documentário, tema que estudou mais tarde numa pós-graduação, confunde-se com o gosto pelo tempo, pela pesquisa e pela memória coletiva, fazer televisão nunca fez parte dos seus planos, mas aconteceu. Em 2001, Luísa Sequeira fez parte da equipa fundadora da NTV, o canal de televisão por cabo emitido a partir do Porto que mais tarde deu origem à atual RTP 3, sendo “Fotograma” (2007-2010) o projeto da sua autoria que recorda com mais saudade.
Foi o primeiro programa de televisão dedicado ao cinema em língua portuguesa e quando o propôs à direção houve dúvidas se haveria conteúdo suficiente para um programa semanal, Luísa garantiu que sim e fez história. “Durante mais de 100 episódios entrevistei realizadores, de Manoel de Oliveira a Nuno Rocha ou João Salaviza, e diretores de fotografia, acompanhei as rodagens de longas-metragens, curtas, documentários, videoclips e festivais de cinema. Alguns pivôs foram gravados no Cinema Passos Manuel, havia um cuidado estético em mostrar o que se estava a fazer nesta área.”
Com o fim do programa e a saída da televisão, criou em 2010 o movimento Shortcutz e organiza o Super 9 Mobile Film Fest, um festival online dedicado exclusivamente ao cinema móvel, fez curadoria em festivais de cinema brasileiros e dedicou-se mais intensamente à realização de documentários e curtas-metragens, como “Motel Sama” (2015), “Os cravos e a Rocha” (2016), “La Luna” (2017), “Quem é Barbara Virginia?” (2017), “Trangressive Speeches” (2019) ou “Crises infinitas” (2019), mas também à videoarte e às exposições de arte visual.
O seu processo criativo é “caótico” e tem direito a muitos cadernos, post-its e vários anos de amadurecimento de ideias, é à noite que se concentra mais no trabalho de montagem e a adesão ou o feedback do público parece não ser a prioridade: “Tento fazer o que sinto que tenho de fazer. As imagens trespassam-nos sempre, desde o início ao fim da nossa vida, e as histórias são como sementes, por vezes trabalho nelas cinco ou dez anos e no momento certo ligo todos os pontos de uma espécie de constelação.”
Se antigamente as questões ambientais, como a poluição ou a reciclagem, eram temas que abordava artisticamente, nos últimos anos tem-se focado essencialmente na reconstrução poética das narrativas femininas na história da arte e do cinema invisibilizadas pelo poder patriarcal, transitando entre o vídeo, o filme, a fotografia e a colagem e explorando as fronteiras entre o digital e o analógico.
O convite surpresa de Ana Luísa Amaral e o desdobramento de um olhar feminista
À boleia do programa “Fotograma”, Luísa Sequeira entrevistou a escritora Ana Luísa Amaral a propósito da ligação do cinema com a poesia. “Quando desliguei o microfone ficámos, em casa dela, a falar de imensa coisa, inclusive de filhos, criámos uma grande cumplicidade e uns tempos depois ligou-me a perguntar se gostaria de fazer um documentário sobre o processo de criação do livro Novas Cartas Portuguesas (1972) contado pelas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Acho que disse logo que sim.”
“O que podem as palavras” é um documentário assinado por Luísa Sequeira e pela jornalista Luísa Marinho, demorou uma década a ser feito por questões de produção e orçamento e foi lançado precisamente 50 anos depois do livro ser publicado. O filme venceu recentemente o prémio do público no Doclisboa 2022, irá estrear-se nas salas em março de 2023 e recorda o processo judicial de que o livro foi alvo, o impacto internacional que causou e o seu caráter feminista atual, através de imagens de arquivo e entrevistas conduzidas por Ana Luísa Amaral. “Só Maria Teresa Horta está hoje viva, o tempo dos projetos é muito lento e as pessoas acabam por não conseguirem fazer as coisas. Portugal devia ter mais apoios para a cultura e para o cinema em particular, o cinema documental é fundamental porque resgata a nossa história e quando mexemos nas memórias dos outros, mexemos e reativamos as nossas também.”
Falar do papel da mulher no cinema é, para Luísa Sequeira, uma forma de ganhar referências de quem desbravou um caminho que agora é seu. “Grande parte da nossa história foi escrita por homens, inúmeras mulheres foram esquecidas, mesmo as primeiras cineastas, é importante tê-las como referências e revelar o seu legado.” Este parece ser um tema que não se esgota, por isso decidiu desdobrar a sua investigação sobre o livro Novas Cartas Portuguesas numa peça de teatro híbrida polissémica, que oscila entre o documental e a performance, cruzando e resgatando palavras e ações de mulheres que ao longo da história tiveram “os seus discursos censurados e apagados pelo regime opressivo e patriarcal, ficando na sombra”.
De Rosa Luxemburgo, filósofa e economista marxista polaco-alemã, que se tornou mundialmente conhecida pela militância revolucionária ligada à Social Democracia da Polónia, a duas mulheres portuguesas presas em Peniche durante a Revolta do Milho, em 1942, são várias as figuras que se tornam protagonistas em palco, pelo corpo de Luísa Sequeira, Carolina Rocha e Mia Tomé. “Na peça reativo diferentes arquivos que estavam na minha cabeça há muito tempo e que agora coloquei em movimento. Interessa-me muito o estado do arquivo, a forma como ele foi cuidado ou preservado ou simplesmente não existe.”
A realizadora, investigadora e programadora está neste momento a terminar um projeto piloto para o Canal 180, focado na vida e obra de realizadoras de cinema portuguesas dos anos 50, e a escrever, juntamente com o marido e artista visual Eduardo Sama, uma curta-metragem de animação sobre o livro Novas Cartas Portuguesas, que deverá estar concluída no próximo ano. Para já, “Rosas de Maio”, uma coprodução do Teatro Municipal do Porto e do Teatro Experimental do Porto, estreia esta sexta-feira, pelas 19h30, no Grande Auditório do Rivoli. Os bilhetes custam 9€ e a peça fica em cena até domingo.