Já se tinha notado um salto na capacidade de limar a prosa entre os dois primeiros romances de João Pinto Coelho. De facto, em Perguntem a Sarah Gross, ainda havia tendência para algum texto estéril, assim como para uma horizontalização de vozes narrativas. Dividido em dois fios narrativos, que iam alternando, o romance revelava já uma tendência do autor para não se atar a uma linha temporal e geográfica única. Ali, temos um fio narrativo com acção na Polónia antes e após o holocausto e outro nos Estados Unidos, no final dos anos 1960. Este primeiro romance revela ainda problemas de estrutura, com um início de mais de cem páginas que pouco dão à narrativa e uma tendência para escrever a mais, ainda que haja cenas assinaláveis e descrições vívidas de Auschwitz.

Apesar de problemas formais, o alcance de Perguntem a Sarah Gross é grande, conseguindo o autor concatenar elementos sem que o leitor, a partir do momento em que o romance ganha fôlego, sinta que a literatura, ou o romance como suporte, está a ser instrumentalizada para atingir um fim. O tema, ou o contexto, do holocausto, que se julgaria esgotado em João Pinto Coelho, dada a dimensão deste projecto literário, acabou por possibilitar mais dois romances e o que se vai notando no autor, para além da tendência crescente para se dedicar mais ao essencial em termos de prosa, é a capacidade de estabelecer um olho em simultâneo clínico e sensível. As personagens não buscam a lágrima fácil e o leitor nunca as encara como veículo para possibilitar um romance. Assim, quando contexto e texto se fundem, a narrativa não tem sabor de coisa encaixada no período tal, inventada só para que exista um livro. Ao invés disto, o leitor fica com as personagens como quem se senta à mesa com gente e o rasgo cada vez mais depurado da escrita só acentua esta tendência.

Nisto, chegámos ao último romance. A primeira frase de Mãe, doce mar agarra e é pungente: “Tinha doze anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.” (p. 9). Avançando-se umas frases, percebe-se que qualquer perigo de o romance se extinguir no melodrama da perda e do reencontro morre na praia. Em vez disto, Noah, o rapaz que encontra a mãe, é só Noah, o que, para personagem, não só mais do que basta como é tudo o que importa.


Título: “Mãe, doce mar”
Autor: João Pinto Coelho
Editora: D. Quixote

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Noah passa a infância entre instituições de acolhimento e pais temporários. Patience, a mãe que lhe chega aos doze anos, acaba por ser mais uma das mães que vai tendo ao longo da vida, pelo menos até ao momento. À altura, já o miúdo tinha sido acolhido por quatro casais sem nada em comum para além de terem sido pais da mesma criança à vez. Os dois reencontram-se e a mãe nunca se refere ao abandono. Para o filho, a mãe – a quinta – passa a ter rosto, embora “de desertora” (p. 33). Com subtileza, Pinto Coelho vai tratando os fios com que a relação se tece:

(…) sei o que é sobreviver a uma mãe inexistente e a uma fugitiva, só ficava por saber o que devia esperar de uma mãe arrependida. Desisti dessa pergunta por causa de outro mistério: Patience nunca mostrou qualquer vestígio de culpa. E aí fiz contas rápidas: ou tinha sangue de réptil, ou calava um bom motivo para não se recriminar. Sempre acreditei mais na segunda por causa de uma certeza: ela gostava de mim. Pode parecer inocência mostrar-me assim perentório, mas há certas evidências que o tempo vai validando. Vi-as no olhar de Patience, na temperatura da voz e na mímica do toque ao esguedelhar-me o cabelo ou até baixar-me as mangas se o vento arrefecesse. Impulsos que não se ensaiam, mas perguntem-me por eles e saberei nomeá-los, descrevendo-os um por um. Parece pouco? Mas como não preferir isso aos gestos exagerados de quem quer remediar o mais vil dos abandonos?” (p. 33)

Este fragmento será de extrema importância ao longo do romance. Em poucas palavras, o autor traça os gestos, ao mesmo tempo que escancara o que ficou por dizer. E, pela voz do narrador, entendemos um amor que parece injustificável, como injustificável parecerá o abandono. Aos poucos, a narrativa começa a montar-se, ainda que os eixos não se denunciem a priori, nem se perceba de que forma as relações estabelecidas serão operantes no romance.

É o caso da entrada de Frank O’Leary na narrativa, um jesuíta que encontra Noah, quando este já é adulto. Encontram-se em frente ao mar da Nova Inglaterra e desde logo se percebe que Frank ganhará corpo no romance, o que se confirma quando chegam os capítulos sobre ele, e estes com alcance no passado. Num salto geográfico e cronológico, temos a juventude de Frank: ele prestes a ser padre e Catherine a chegar-lhe com a insinuação de outra vida. Catherine é apaixonante para Frank e para o leitor, que, vendo-a sob os olhos do primeiro, também se prende à fúria de viver que a personagem traz, desarmado pela forma como ela corta “sempre a direito, fosse num daqueles assuntos que muitos tratam com pinças, fosse num desfile festivo do feriado de St. Patrick’s” (p. 97). Na zona cinzenta que se cria no espaço entre um e outro, impera a luz de uma promessa, da proibição permanente, e então surge Frank com o punhal da dúvida, descarnado perante a potência da paixão:

Mas o que é que eu lhe dizia? Que queria despovoar-me? Tornar-me um lugar deserto que pudesse acomodar toda a minha vastidão, morada do Filho do Homem? O que veria ela em mim para lá do miúdo ingénuo que corria no recreio a empunhar Jesus Cristo como um avião de papel? Não, não foi assim que lho disse. Na verdade, nessa altura, nem saberia fazê-lo: traduzir-me em duas frases levou tempo a lapidar.” (p. 97)

A relação entre os dois, doseada e tensa pelas condições – ela comprometida com o melhor amigo dele, ele comprometido com um futuro que não podia incluí-la –, faz-se através da aposta de Pinto Coelho na subtileza, coisa que domina na arte de narrar. É essa subtileza que dá um tom permanente de melancolia às páginas em que os dois se encontram a sós e a possibilidade existe.

Nesta altura, ainda não se percebe como é que as histórias entrelaçadas irão compor um romance, ainda que os capítulos se leiam de forma escorreita, apesar dos saltos no tempo e no espaço. Durante boa parte da narrativa, fica a sensação de que falta qualquer coisa, mas as últimas páginas entram, nada é o que parece e os fios são atados num todo orgânico que surpreende o leitor e justifica tudo o que há para trás.

Os diálogos são também assinaláveis, numa melhoria a pique da técnica do autor, que conseguiu agora trazer vozes incisivas e conversas vivas que, nunca deixando de ter voz de gente, batem sempre na surpresa. Em discurso directo ou indirecto, o que parece primar sem excepção é a elegância narrativa, num romance que parece ter sido editado até ao osso.

A autora escreve segundo a antiga ortografia