A campa de Susan Sontag, que aparece lá para o fim do documentário, fica no cemitério de Montparnasse. O Père-Lachaise, claro, é o mais conhecido dos cemitérios de Paris, onde até os jardins dos mortos são belos e se oferecem como atração turística. Mas isso é, provavelmente, por causa de Jim Morrison, um desses mortos demasiado vivos a cuja pedra tumular alguns vão buscar a indemnização pelos dias não vividos na companhia quente do falecido. Montparnasse, na verdade, é mais belo, mais cuidado e, se possível, ainda melhor frequentado. É lá que repousam, entre outros, Samuel Beckett, Charles Baudelaire, Julio Cortázar, Serge Gainsbourg (o campeão das flores, fotos e beijinhos), Marguerite Duras, Ionescu, Guy de Maupassant, Man Ray e, em campas gémeas, o casal Simone de Beauvoir / Jean-Paul Sartre.
Claro que era aqui que Susan Sontag teria de ficar enterrada, ela que já antes arrendara um apartamento em Saint Germain onde Beauvoir vivera e Sontag na verdade, conta-nos o documentário, acabaria por nunca dormir. Claro que o seu túmulo é quase desproporcionalmente belo, elegante, cuidado, em pedra negra, brilhante, polida, letras douradas com o nome e as datas, e as flores de amigos e admiradores e que até essas parecem seletas e selecionadas, cuidadosamente para não serem de mais nem de menos.
Quase juraríamos que Sontag planeou tudo. Deixou, meticulosamente, escrito como queria que fosse a sua pedra tumular e, apensa, uma lista das flores permitidas para a lembrarem. Não é impossível; parece até muito consistente com alguém que estudou, cuidadosamente, todas as suas poses e aparições ao longo da vida. Mas é estranho e improvável para alguém que, por outro lado, se recusava a morrer; que adorava, como diz logo na abertura de “Regarding Susan Sontag”, estar viva; que acreditava, contra todas as probabilidades, que, mais uma vez, seria aberta uma exceção para ela e venceria o terceiro ataque do cancro. Não. Ela não planeou a última morada. Quer dizer, talvez tenha soprado, no último momento, umas indicações. E o resto vá dos seus fiéis admiradores, devotos, respeitadores de uma estética que se impôs como ética.
[o trailer de “A Propósito de Susan Sontag”:]
“Regarding Susan Sontag” (“A Propósito de Susan Sontag”) é um documentário de Nancy Kates que estreou já em 2014, no Festival de Tribeca, no 10.º aniversário da morte da biografada. Porque é que só agora chega até nós, trazido pela Filmin, sendo que até é um documentário da HBO? Talvez a reboque da estreia, na semana passada, de “Loving Highsmith”. Duas escritoras americanas do século XX, duas mulheres em mundos de homens, homossexuais, coqueluches a dado momento, voluntária ou involuntariamente, de movimentos feministas. Duas intelectuais divididas entre América e Europa, vida pessoal e literária.
Mas, prosseguindo o paralelo que as estreias quase simultâneas autorizam, é aqui que os caminhos divergem. Se Patricia Highsmith foi, como aqui escrevíamos há dias, a epítome da escritora comprometida com uma vocação, secundando a vida sentimental à obrigatória solidão da carpintaria da escrita, Susan Sontag foi o oposto: a escritora que vive no mundo, que aceita os convites, que não sabe nem quer estar sozinha, que acredita no papel social do escritor, no exercício da sua influência social e política no presente concreto, na luta por um púlpito e por um tempo de antena que lhe permitam levar, o mais longe e o mais alto possível, essa influência. Na ideia, a dado momento citada de Camus, de que o escritor que se limite a escrever nem escritor é.
Mas, se Highsmith “ganhou” a Sontag no campeonato da criação pura, a segunda teve mais sorte com o documentário. Muito mais do que uma elegia ou até do que um manifesto homossexual (embora tenha feito esse circuito de festivais), “Regarding Susan Sontag” é um retrato mais completo, humano, poliédrico e até esteticamente mais interessante do que “Loving Highsmith”, não se coibindo, em momento algum, de mostrar as faces do seu objeto de estudo menos dignas de hagiografia.
Sontag é retratada como uma das mais influentes intelectuais da segunda metade do século XX, mas alguém que falhou o salto para a condição de génio, justamente, nas palavras da própria, por não estar disposta, entre outras coisas, a pagar o preço da solidão. Como a voz de uma consciência americana urbana, absolutamente contemporânea, sem medo de enfrentar os temas de cada momento, e ser totalmente contracorrente quando sentia ter de sê-lo – mas também o ser humano que uma e outra e outra vez maltratou a família ou as amantes. Como uma cuidadosa poseur, léguas à frente da concorrência na consciência da importância e poder da imagem, mas que também não se deixou instrumentalizar ou reduzir a bandeira feminina ou feminista. Como a ativista que denunciou os pecados do “imperialismo americano”, mas também como a snob que escreveu sempre bem instalada nos apartamentos de Paris ou na penthouse em Manhattan, já que “não viveria neste país se não fosse naquela cidade”.
No mais, a presença de Nancy Kates é discreta, como diríamos que deve ser a do documentarista, tão mais hábil e poderoso quanto menos se mostra. É estranho que, por enquanto, a sua carreira se tenha quedado aparentemente por ali.
Com depoimentos de Annie Leibovitz, Fran Lebowitz e muitas outras figuras de uma certa “elite” nova-iorquina, ampla documentação de arquivo que inclui entrevistas com Charlie Rose e uma confrontação com Norman Mailer, aparições de Agnès Varda ou Andy Warhol e leitura dos excertos de Susan Sontag por Patricia Clarkson (“Sete Palmos de Terra” ou “State of the Union”), “Regarding Susan Sontag” é um documentário útil para pensar o lugar do escritor e do filósofo no nosso tempo, a relevância ou irrelevância do seu papel, a medida ou desmesura da ambição de quem aspira, simultaneamente, a tocar todos os instrumentos, à cultura pop e à erudição, ao imediato e ao intemporal.
“Um escritor não salva vidas”, diz, já perto do fim, Fran Lebowitz a propósito da estadia de Sontag em Sarajevo durante a guerra. “Alguns gostam de pensar em si dessa forma irónica. Mas são intervenções militares que param genocídios, não encenações do ‘À Espera de Godot’.”
A dado momento, alguém diz que Sontag se esgadanhou (o verbo não era este, mas serve) toda a vida para ascender ao restrito Olimpo dos imortais que a própria considerava terem mudado o mundo com o seu génio. A campa em Montparnasse é demasiado bonita. Demasiado ao pé da de Beckett ou Cortázar ou outro grande escritor, que foi sempre o que ela quis ser. Muito provavelmente, Susan Sontag falhou a vida. Mas nunca ninguém falhou com mais prazer nem mais estilo.