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A propósito de Susan Sontag, uma pergunta simples: para que serve um escritor?

Este artigo tem mais de 2 anos

Documentário de 2014 que, finalmente, chega através da Filmin, “Regarding Susan Sontag” traça o retrato de uma das maiores intelectuais da segunda metade do século XX.

Sontag, a escritora que vive no mundo, que aceita os convites, que não sabe nem quer estar sozinha, que acredita no papel social e na influência de quem escreve, que luta pelo tempo de antena que lhe permita espalhar essa influência
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Sontag, a escritora que vive no mundo, que aceita os convites, que não sabe nem quer estar sozinha, que acredita no papel social e na influência de quem escreve, que luta pelo tempo de antena que lhe permita espalhar essa influência

© Sophie Bassouls/Sygma/Corbis

Sontag, a escritora que vive no mundo, que aceita os convites, que não sabe nem quer estar sozinha, que acredita no papel social e na influência de quem escreve, que luta pelo tempo de antena que lhe permita espalhar essa influência

© Sophie Bassouls/Sygma/Corbis

A campa de Susan Sontag, que aparece lá para o fim do documentário, fica no cemitério de Montparnasse. O Père-Lachaise, claro, é o mais conhecido dos cemitérios de Paris, onde até os jardins dos mortos são belos e se oferecem como atração turística. Mas isso é, provavelmente, por causa de Jim Morrison, um desses mortos demasiado vivos a cuja pedra tumular alguns vão buscar a indemnização pelos dias não vividos na companhia quente do falecido. Montparnasse, na verdade, é mais belo, mais cuidado e, se possível, ainda melhor frequentado. É lá que repousam, entre outros, Samuel Beckett, Charles Baudelaire, Julio Cortázar, Serge Gainsbourg (o campeão das flores, fotos e beijinhos), Marguerite Duras, Ionescu, Guy de Maupassant, Man Ray e, em campas gémeas, o casal Simone de Beauvoir / Jean-Paul Sartre.

Claro que era aqui que Susan Sontag teria de ficar enterrada, ela que já antes arrendara um apartamento em Saint Germain onde Beauvoir vivera e Sontag na verdade, conta-nos o documentário, acabaria por nunca dormir. Claro que o seu túmulo é quase desproporcionalmente belo, elegante, cuidado, em pedra negra, brilhante, polida, letras douradas com o nome e as datas, e as flores de amigos e admiradores e que até essas parecem seletas e selecionadas, cuidadosamente para não serem de mais nem de menos.

Quase juraríamos que Sontag planeou tudo. Deixou, meticulosamente, escrito como queria que fosse a sua pedra tumular e, apensa, uma lista das flores permitidas para a lembrarem. Não é impossível; parece até muito consistente com alguém que estudou, cuidadosamente, todas as suas poses e aparições ao longo da vida. Mas é estranho e improvável para alguém que, por outro lado, se recusava a morrer; que adorava, como diz logo na abertura de “Regarding Susan Sontag”, estar viva; que acreditava, contra todas as probabilidades, que, mais uma vez, seria aberta uma exceção para ela e venceria o terceiro ataque do cancro. Não. Ela não planeou a última morada. Quer dizer, talvez tenha soprado, no último momento, umas indicações. E o resto vá dos seus fiéis admiradores, devotos, respeitadores de uma estética que se impôs como ética.

[o trailer de “A Propósito de Susan Sontag”:]

“Regarding Susan Sontag” (“A Propósito de Susan Sontag”) é um documentário de Nancy Kates que estreou já em 2014, no Festival de Tribeca, no 10.º aniversário da morte da biografada. Porque é que só agora chega até nós, trazido pela Filmin, sendo que até é um documentário da HBO? Talvez a reboque da estreia, na semana passada, de “Loving Highsmith”. Duas escritoras americanas do século XX, duas mulheres em mundos de homens, homossexuais, coqueluches a dado momento, voluntária ou involuntariamente, de movimentos feministas. Duas intelectuais divididas entre América e Europa, vida pessoal e literária.

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Mas, prosseguindo o paralelo que as estreias quase simultâneas autorizam, é aqui que os caminhos divergem. Se Patricia Highsmith foi, como aqui escrevíamos há dias, a epítome da escritora comprometida com uma vocação, secundando a vida sentimental à obrigatória solidão da carpintaria da escrita, Susan Sontag foi o oposto: a escritora que vive no mundo, que aceita os convites, que não sabe nem quer estar sozinha, que acredita no papel social do escritor, no exercício da sua influência social e política no presente concreto, na luta por um púlpito e por um tempo de antena que lhe permitam levar, o mais longe e o mais alto possível, essa influência. Na ideia, a dado momento citada de Camus, de que o escritor que se limite a escrever nem escritor é.

Mas, se Highsmith “ganhou” a Sontag no campeonato da criação pura, a segunda teve mais sorte com o documentário. Muito mais do que uma elegia ou até do que um manifesto homossexual (embora tenha feito esse circuito de festivais), “Regarding Susan Sontag” é um retrato mais completo, humano, poliédrico e até esteticamente mais interessante do que “Loving Highsmith”, não se coibindo, em momento algum, de mostrar as faces do seu objeto de estudo menos dignas de hagiografia.

Sontag é retratada como uma das mais influentes intelectuais da segunda metade do século XX, mas alguém que falhou o salto para a condição de génio, justamente, nas palavras da própria, por não estar disposta, entre outras coisas, a pagar o preço da solidão. Como a voz de uma consciência americana urbana, absolutamente contemporânea, sem medo de enfrentar os temas de cada momento, e ser totalmente contracorrente quando sentia ter de sê-lo – mas também o ser humano que uma e outra e outra vez maltratou a família ou as amantes. Como uma cuidadosa poseur, léguas à frente da concorrência na consciência da importância e poder da imagem, mas que também não se deixou instrumentalizar ou reduzir a bandeira feminina ou feminista. Como a ativista que denunciou os pecados do “imperialismo americano”, mas também como a snob que escreveu sempre bem instalada nos apartamentos de Paris ou na penthouse em Manhattan, já que “não viveria neste país se não fosse naquela cidade”.

Muito provavelmente, Susan Sontag falhou a vida. Mas nunca ninguém falhou com mais prazer nem mais estilo

No mais, a presença de Nancy Kates é discreta, como diríamos que deve ser a do documentarista, tão mais hábil e poderoso quanto menos se mostra. É estranho que, por enquanto, a sua carreira se tenha quedado aparentemente por ali.

Com depoimentos de Annie Leibovitz, Fran Lebowitz e muitas outras figuras de uma certa “elite” nova-iorquina, ampla documentação de arquivo que inclui entrevistas com Charlie Rose e uma confrontação com Norman Mailer, aparições de Agnès Varda ou Andy Warhol e leitura dos excertos de Susan Sontag por Patricia Clarkson (“Sete Palmos de Terra” ou “State of the Union”), “Regarding Susan Sontag” é um documentário útil para pensar o lugar do escritor e do filósofo no nosso tempo, a relevância ou irrelevância do seu papel, a medida ou desmesura da ambição de quem aspira, simultaneamente, a tocar todos os instrumentos, à cultura pop e à erudição, ao imediato e ao intemporal.

“Um escritor não salva vidas”, diz, já perto do fim, Fran Lebowitz a propósito da estadia de Sontag em Sarajevo durante a guerra. “Alguns gostam de pensar em si dessa forma irónica. Mas são intervenções militares que param genocídios, não encenações do ‘À Espera de Godot’.”

A dado momento, alguém diz que Sontag se esgadanhou (o verbo não era este, mas serve) toda a vida para ascender ao restrito Olimpo dos imortais que a própria considerava terem mudado o mundo com o seu génio. A campa em Montparnasse é demasiado bonita. Demasiado ao pé da de Beckett ou Cortázar ou outro grande escritor, que foi sempre o que ela quis ser. Muito provavelmente, Susan Sontag falhou a vida. Mas nunca ninguém falhou com mais prazer nem mais estilo.

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