O produtor e realizador António da Cunha Telles, um dos nomes indissociáveis do Cinema Novo português nos anos de 1960, morreu esta quarta-feira aos 87 anos, disse à Agência Lusa a filha, a produtora Pandora da Cunha Telles. Segundo a produtora, António da Cunha Telles morreu no Hospital Cuf Tejo, em Lisboa, e o funeral irá realizar-se no sábado, também na capital.
António Cohen da Cunha Telles nasceu no Funchal, a 26 fevereiro de 1935. Tinha praticamente concluído, e ainda inédito, o filme “Cherchez la femme”, inspirado numa obra de Mário de Sá-Carneiro.
O filme contou com apoio financeiro do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) mas, segundo revelou António-Pedro Vasconcelos à Agência Lusa, Cunha Telles “só conseguiu filmar depois de ter sido chumbado duas vezes” nos concursos. “Esteve durante à volta de 13 anos a ser chumbado nos júris do ICA. Houve cativações e ele teve de parar o filme. Conseguiu montá-lo e vai estrear já com ele morto”, disse, lamentando a maneira como “o Estado trata o cinema português e alguns realizadores portugueses”. “É inaceitável”, declarou.
Filho de um advogado português e de uma cantora lírica dinamarquesa, foi na Madeira que, ainda na adolescência começou a fazer filmes. As películas desses primeiros filmes era revelada na banheira de casa dos pais porque, se os enviasse para o continente, demorariam três meses a ser revelados, disse no documentário “Chamo-me António da Cunha Telles” (2011), de Álvaro Romão.
[Excerto do documentário “Chamo-me António da Cunha Telles”:]
O realizador fez a sua formação em Paris, onde esteve quatro anos, antes de regressar a Portugal, em 1961. Foi na capital francesa, quando estudava realização no Institut d’Hautes Études Cinematographiques, que se cruzou pela primeira vez com Paulo Rocha, de quem produziu “Os Verdes Anos” (1963), estreando-se no papel de produtor.
O filme, protagonizado por Isabel Ruth e Rui Gomes, com música do guitarrista Carlos Paredes, é considerado um dos momentos fundadores do Novo Cinema português, ao qual Cunha Telles ficou para sempre ligado, assim como uma geração de outros realizadores, que inclui Fernando Lopes, Manuel Guimarães, Faria de Almeida e António de Macedo, com os quais colaborou.
Em 1961, foi escolhido para dirigir o jornal Imagens de Portugal e para orientar o Curso de Cinema Experimental no Estúdio Universitário da Mocidade Portuguesa, que formou grande parte da geração de técnicos do Cinema Novo. Assumiu funções como diretor dos serviços de cinema da Direção-Geral do Ensino Primário, onde realizou a sua primeira curta-metragem, “Os Transportes” (1962). Antes da sua partida para França, tinha trabalhado como operador de câmara na RTP, tendo filmado a visita de Isabel II em 1957.
Importante figura do cinema português, Cunha Telles marcou fortemente o início dos anos 60, quando emergiu como produtor do Cinema Novo, não só com “Os Verdes Anos” (1963), de Paulo Rocha, mas também com “Belarmino” (1964), de Fernando Lopes, e “Domingo à Tarde” de António de Macedo (1965).
Como realizador, “filmou retratos de geração”, destacou a Cinemateca, como em “Meus Amigos” (1974), “Vidas” (1984) e, sobretudo, no marcante “O Cerco” (1970), vencedor do prémio de melhor filme do Secretariado Nacional de Informação.
[Trailer de “O Cerco” (1970):]
“Cruzou a militância do cinema de abril com um surpreendente olhar etnográfico (“Os Índios da Meia Praia”), filmou uma ficção em que é permitida a leitura de um “autorretrato” (“Pandora”) e um filme de época em que voltou ao início dos anos 60 propondo um surpreendente retrato feminino (“Kiss Me”)”, refere a Cinemateca Portuguesa, que organizou uma retrospetiva da obra do realizador em 2014.
“O triste cinema que ainda existia, sem graça, sem piada, sem ideias, cinzentão, não queria que nós aparecêssemos. Fechou-nos completamente as portas. (…) A minha primeira ideia era ter sido segundo assistente de um dos realizadores da época, para ver como funcionava. Isso foi-nos proibido. Aproximámo-nos entre nós e começámos a fazer filmes com equipas que inventámos”, disse Cunha Telles, em 2014, numa entrevista à Antena 2.
Em 1968, criou a produtora CineNovo e, em novembro de 1971, fundou a distribuidora Animatógrafo, importante veículo de divulgação, uma revolução no cinema visto em Portugal”, permitindo a chegada de filmes de realizadores como Sergei Eisenstein, Glauber Rocha, Bernardo Bertollucci, François Truffaut e Jean-Luc Godard.
“O seu papel como distribuidor, alicerçado numa lógica cinéfila que cultivou na Cinemateca Francesa nos tempos de estudante, é igualmente notável, tendo sido responsável pela exibição em Portugal de filmes clássicos de cineastas como Sergei Eisenstein, Jean Renoir, Jean Vigo, Roberto Rossellini, bem como de cineastas então emergentes: Nagisa Oshima, Alain Tanner, Bernardo Bertolucci e Glauber Rocha”, sublinhou a Cinemateca.
Apesar dessa multiplicação de funções no cinema, na produção, distribuição e formação, e em cargos diretivos, na administração do antigo Instituto Português de Cinema e na Tobis, Cunha Telles admitiu em 2017: “No meu íntimo, sou mais realizador do que produtor”.
Membro honorário da Academia Portuguesa de Cinema, foi agraciado em 2018 pela Presidência da República com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.
António Pedro Vasconcelos: António da Cunha Telles é “o homem mais importante do cinema português”
O realizador António-Pedro Vasconcelos lamentou a morte de António da Cunha Telles e lamentou a falta de apoio que teve nas últimas décadas, lembrando que, por causa disso, o seu último filme só irá estrear a título póstumo.
“Foi o homem mais importante do cinema português, porque não foi apenas produtor, distribuidor, diretor do ICA, diretor da Tobis; foi um inovador, pensou sempre antes dos outros, fez coproduções com França, formou os técnicos portugueses”, enumerou Vasconcelos em declarações à Agência Lusa.
O realizador de 83 anos recordou que conheceu Cunha Telles na década essencial de renovação do cinema português e que o produtor o amparou sempre ao longo da carreira. “Está ligado àqueles [filmes] que tiveram mais dificuldades. Ele foi sempre sensacional. (…) Ele veio sempre, de maneiras diferentes, salvar vários filmes meus e foi absolutamente decisivo”, disse Vasconcelos, citando, por exemplo, “Perdido por cem” (1973), “Oxalá” (1980) e “O lugar do morto” (1984).