O Santo Ilusionista é o terceiro romance de Cláudia Andrade. É também o maior, o mais completo, o mais forte. Tem como protagonista o referido Santo Ilusionista, personagem esquiva numa história também ela esquiva. Pouco ou nada é revelado sobre ele — quem é, o seu nome, origens, sonhos de criança ou agitado percurso, desde que, muito cedo, saiu de casa, até que se apoderou de um sofá alheio para pernoitar e assistir a um episódio do “CSI”, onde se encontra nas primeiras páginas do livro. O que importa é a viagem, que, no caso do Ilusionista é longa, constante e repleta de peripécias.
Vagabundo profissional, incapaz de se fixar num só sítio ou de conviver durante muito tempo com as mesmas pessoas (a humanidade aborrece-o mais do que o assusta), atravessa a paisagem de um possível Portugal rural em busca de tudo e de nada, e em fuga constante de um passado que o perturba e o engana. As visões que tem da vida que deixou para trás são como alucinações: de repente, é atirado para a infância como contra uma parede, para as mãos cruéis da mãe violenta e para a aspereza da avó, dura, mas sempre justa, cuja morte pôs um fim a uma existência de que queria fugir a todo o custo. Nesse dia, com a avó ainda no caixão por fechar, cruzou a porta de casa e não voltou a olhar para trás. Deixou ficar a mãe de unhas afiadas, o seu perfume enjoativo e as exigências de uma vida que não fazia sentido.
Começou a caminhar (junto ao abismo) e não mais parou. E pelo caminho, da vida e do livro, foi-se cruzando com personagens singulares e paisagens belas e transcendentes, mergulhando em aventuras surreais (é difícil perceber onde acaba a realidade e começa a alucinação em O Santo Ilusionista) e assumindo diferentes papéis, como um ator numa companhia itinerante. As muitas personagens que encarna não são escolhidas por si, mas impostas por outros que transpõem para si os seus desejos, ambições, vontades e familiares desaparecidos ou que nunca existiram. Um dia é um sem-abrigo nos subúrbios de uma cidade escura e cinzenta; noutro um inútil pai de família que vive de mudar antigos eletrodomésticos de sítio; e num terceiro um ajudante de um pastor de ovelhas que quer fotografar a Virgem Maria. Tal como a mãe o obrigava a assumir diferentes papéis — o de menino bem comportado, o de velador da avó morta –, deixa-se guiar e transformar em caricatura por outras caricaturas, até que inevitavelmente se farta, desaparece e retoma o caminho.
Título: “O Santo Ilusionista”
Autor: Cláudia Andrade
Editora: Elsinore
Páginas: 218
O desdém com que encara o seu semelhante (“O que mais se pode fazer relativamente a elas [as pessoas], a não ser consolarmo-nos na certeza de que um dia morrerão?”) é compensada pelo deslumbramento que a natureza lhe causa. Esse chega sem aviso, atirando-o para um estado catatónico de felicidade, um sentimento que abraça com estranheza, como se se tivesse esquecido de que é possível ser feliz. Ao acordar à beira-mar, admite julgar que já se encontrava “vacinado contra paraísos”. “Mas não, porque nada podia haver de mais risonho do que aquele azul-dourado matinal, e eu sentia-me particularmente triste por me encontrar vivo e alegre, um sentimento bizarro, algo como uma aula de harpa nas nuvens mais fofas, forçada a palmatória pelos anjos. A maresia no meu palato transformava-se em lágrimas antigas que não conseguia localizar”, declara, extasiado.
É nos momentos em que se encontra a sós com a natureza que o Ilusionista parece estar mais próximo de uma tranquilidade sem comichões e incómodos. Esquece-se até do próprio corpo, “sempre difícil”, “caprichoso”, “infantil”, com as suas muitas “peças e engrenagens, demasiado sujeito, demasiado à deriva”. Que nunca está “bem”. Mas é breve o momento. A consciência do corpo e das suas necessidades regressa, e abate-se sobre ele o peso da sua própria mortalidade. A ideia de que o ser humano é apenas um corpo à deriva atravessa toda a obra e está presente em quase todas as páginas do livro. Cláudia Andrade não tem pudor em admitir que as necessidades fisiológicas fazem o homem, assim como a fome, a sede ou o cansaço. É preciso urinar, defecar, comer, beber água e dormir, e são essas necessidades, mais do que qualquer desejo, que comandam a vida. A humanidade pode ser uma triste condição e os humanos um grupo banal e sem graça.
Os romances de Cláudia Andrade não são solares, e O Santo Ilusionista também não o é. Há negritude, mas depois o sol brilha entre as árvores. Haverá maior consolo? Como o próprio Ilusionista constata na última página do livro: “Melhor será usar o que nos resta de força para aprofundar o abismo com as unhas e constatar que dali o céu é pequeno, mas redondo, e só nosso”. Até no fundo do poço raia o sol.
Escrito com uma crueza de linguagem e imagética e uma negritude que são típicas de Cláudia Andrade, O Santo Ilusionista é o retrato de uma humanidade banal, que retoma a ideia, tão antiga quanto o próprio ser humano, de que este é um eterno viajante em busca, desde o nascimento até à morte, de um lugar, um significado ou uma vida. Um livro brilhante e o melhor e mais profundo romance da escritora portuguesa.