Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Havia qualquer coisa de diferente no ar. O quê? Difícil de explicar. Mas havia, havia mesmo. Pelo segundo dia consecutivo Doha não viu sol de manhã (algo que acontecera sempre desde o início do Campeonato do Mundo, até mesmo no único dia em que choveu), pela primeira vez soprava um vento daqueles que se sente e que também pela primeira vez obrigava a tirar do armário essa coisa tão esquecida nas últimas três semanas chamada camisola. Na chegada ao Estádio Al Thumama, nem sinal de portugueses. Chegariam mais tarde, ainda que em número pequeno face ao adversário, mas sendo “engolidos” por uma autêntica onda vermelha de marroquinos que invadiu o Qatar. Ah, e polícias em número verdadeiro assombroso, num total de 10.000 efetivos como nunca antes se vira no Mundial. Sim, havia qualquer coisa de diferente no ar.

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Quando se olhava para o quadro dos oitavos da competição e se via os resultados que deram acesso aos jogos dos quartos, havia apenas um que não batia certo com a lógica possível que o futebol pode ter. Por sinal, o que tocaria diretamente a Portugal. Países Baixos, Argentina, Croácia, Brasil, França e Inglaterra cumpriram a sua parte tal como a Seleção, a Espanha caiu frente a Marrocos. Todavia, para quem viu a equipa africana nos encontros realizados até ao momento, onde não só eliminou uma antiga campeã mundial como passou em primeiro num grupo que tinha o segundo e o terceiro classificados do último Mundial, sabia que não era coisa para seguir pelo nome ou pela lógica. Aliás, havia mais do que um plano desportivo no horizonte.

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Não foram muitas as equipas africanas nos quartos do Mundial. O inglês Gary Lineker, com dois penáltis, deitou por terra o sonho dos Camarões do mítico avançado Roger Milla no prolongamento em 1990 (3-2). O turco Ilhan Mansiz, com um golo dourado a abrir o prolongamento, afastou o Senegal do agora selecionador Aliou Cissé (1-0). Os uruguaios ganharam após grandes penalidades ao Gana de Muntari ou Boateng num encontro dramático em que Gyan falhou um penálti aos 120′ por defesa com a mão de Luis Suárez (1-1, 4-2). Agora, seguia-se Marrocos. Seguia-se mais do que uma equipa africana porque esta era também a primeira vez em que o mundo árabe tinha um representante entre os oito melhores do mundo. E isso tinha peso.

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O acordo entre o governo marroquino e a Federação de Futebol local com a companhia aérea nacional deu margem para que mais de 2.000 adeptos tivessem chegado ao Qatar a 450 euros por viagem (bem menos de metade do que um voo normal custaria). Ou seja, uma falange ainda maior do que havia, fora todos aqueles que já tinham feitos reservas com outras escalas. Em paralelo, e depois das informações de que na manhã do jogo com a Espanha tinham sido oferecidos 500 bilhetes na zona de Katara – pagos por “alguém”, essa parte ninguém sabe ao certo como acontece –, pelo menos 10.000 adeptos marroquinos estariam nas imediações do recinto em busca de um qualquer “milagre”. A tudo isso juntava-se aquela frase de Walid Regragui após a chegada aos quartos que ninguém esqueceu: “Em determinado ponto, teremos de ser ambiciosos. Mesmo sabendo que vai ser muito difícil, porque não um conjunto de África ganhar o Mundial?”.

Era este o contexto que Portugal iria enfrentar na terceira presença nos quartos do Campeonato do Mundo, era contra isto também que a Seleção teria de jogar além de um adversário intenso, agressivo, a mostrar uma organização defensiva fora do comum entre equipas africanas e um toque tático na maneira como conseguia gerir momentos de jogo e nunca esquecer as transições ofensivas a colocar a bola na profundidade pelas duas laterais. Se havia equipa elogiada até aqui pelos analistas e comentadores, era Marrocos. Mas se em paralelo havia equipa colocada como uma potencial finalista neste Mundial, era Portugal – assim conseguisse fazer tudo o que se bom fez não só na goleada com a Suíça mas também com o Gana e o Uruguai.

Quase de forma premonitória, a Federação colocava nas redes sociais uma imagem dos jogadores no habitual passeio de descompressão com a frase “A calma antes da tempestade”. E foi mesmo contra isso que Portugal teve de lutar, uma tempestade. Uma tempestade em campo, frente a uma equipa daquelas que não cedem mesmo quando já passaram há muito o limite do que podem dar no plano físico, uma tempestade fora dele, com os adeptos que chegaram mais ou menos a horas e os reforços que entraram em barda ao intervalo a criarem um ambiente inacreditável que foi empurrando a equipa para onde as pernas já não deixavam andar. E foi assim que, entre mais uma exibição a mostrar o melhor João Félix entre deceções muitos furos abaixo do que já fizeram, Marrocos prolongou a história de sonho e afastou Portugal nos quartos.

O encontro começou com um cartão de apresentação mais do que fiel para aquilo que as duas formações esperavam trazer para este jogo. Do lado nacional, bola. Muito bola. Mesmo que muitas vezes a posse fosse ainda no seu meio-campo, Portugal quis controlar as operações tentando sempre um de dois caminhos entre a exploração das costas de Amrabat no espaço entre linhas ou as variações rápidas de flanco que pudessem situações de 1×1. Do lado marroquino, espaço. Muito controlo do espaço. Walid Regragui foi pedindo desde início à equipa para não baixar em demasia a linha defensiva mesmo dando a profundidade a Portugal mas queria sobretudo tapar todos os caminhos para depois explorar as saídas pelos alas, sendo que a gestão para ir aguentando no plano físico era feita muitas (demasiadas) vezes com perdas de tempo nas reposições.

Assim, e nos 20 minutos iniciais, houve apenas dois lances com perigo junto das balizas, ambos na sequência de bolas paradas. João Félix, num desvio de cabeça após livre lateral marcado por Bruno Fernandes, obrigou Bono à primeira defesa mais apertada para canto (5′). Youssef En-Nesyri, apenas dois minutos depois e num canto que nasce da primeira ameaça em transição ofensiva dos marroquinos, cabeceou por cima entre os centrais (7′). Mais para a frente, Ziyech tentaria a primeira diagonal da direita para o meio para aproveitar o pé esquerdo e visar a baliza mas a tentativa saiu fraca e ao lado (18′). O jogo estava “atado”, a criar um duelo particular interessante entre João Félix e Hakimi e com Azzedine Ounahi, o tal número 8 que impressionara Luis Enrique no encontro com os espanhóis, a mostrar que o Angers é pequeno para tanto futebol.

O jogo estava tudo menos fácil. João Félix, numa segunda bola ganha à entrada da área, ainda viu um remate bater num adversário e quase trair Bono (30′) mas era Marrocos que começava a ganhar conforto no jogo e a fazer prevalecer as variações rápidas que Portugal tentava sem sucesso. Youssef En-Nesyri, mais uma vez na bola parada, voltou a ganhar num lance aéreo sem enquadrar a tentativa (26′) mas era com a bola e saídas rápidas que se começava a acercar também o perigo junto da baliza de Diogo Costa com Amallah a concluir por cima uma jogada de envolvimento na esquerda entre Boufal e Allah (35′) e Boufal a fazer tentar também uma diagonal de fora para dentro para remate à figura do guarda-redes nacional (36′).

O golo chegaria um pouco depois, talvez no lance que parecia mais inofensivo: Ounahi ganhou o ressalto, Allah fez um centro largo que parecia fácil, En-Nesyri foi ao segundo andar agora com a noção de que havia uma baliza como objetivo no desvio de cabeça e Diogo Costa viu o golo a meio caminho da viagem entre uma grande defesa e um erro que não é normal (42′). Marrocos estava em vantagem mas a primeira parte ainda estava longe de terminar, com Otávio e Bruno Fernandes a caírem em lances distintos na área com o árbitro a mandar seguir, o mesmo Bruno Fernandes a ter um remate fantástico à trave que ficaria como um dos melhores do torneio e Allah a rematar ao lado em boa posição em mais uma grande saída a apanhar neste caso a formação nacional ainda a recuperar que passou pelos pés do inevitável Ounahi.

Aquele gesto de Gonçalo Ramos após o 1-0, a pedir uma bola para colocar no centro e tentar reatar o mais depressa possível o encontro, era como um mote daquilo que havia ainda para fazer. A ansiedade começava a ser a pior inimiga de Portugal, muitas vezes nem tanto pelos passes que não entravam ou saíam mais para trás ou para a frente mas pelas desconcentrações e erros posicionais que permitiam as arrancadas pelas alas dos marroquinos. Numa delas, Hakimi ganhou uma falta e Yamiq desviou de cabeça para defesa quase por instinto de Diogo Costa (49′). Estava na hora de mudar, estava também na hora das substituições. Ronaldo foi a jogo com João Cancelo, Saïss não aguentou mais após alguns minutos agarrado à coxa esquerda.

Do banco, todos pediam calma. Só paciência e calma. O jogo ganhava de vez um sentido único, Marrocos perdia capacidade de saída e Portugal assentava arraiais no meio-campo contrário com um primeiro aviso que poderia ter levado muito mais perigo num cruzamento de Otávio, já a jogar como o médio mais recuado em vez de Rúben Neves, que Gonçalo Ramos desviou de cabeça ao lado (58′). Pouco depois, numa jogada que começou num corte de Rúben Dias 15/20 metros à frente do meio-campo, Bruno Fernandes rematou a rasar a trave da baliza de Bono (63′). Se antes Marrocos já demorava nas reposições, a partir daí era tudo em busca da eternidade perante o colapso físico das principais unidades. Tudo sem admoestações.

Fernando Santos voltava a mexer na equipa, com as entradas de Vitinha e Rafael Leão para os lugares de Otávio e Gonçalo Ramos. Mais critério na construção, mais largura no ataque, mais Félix pelo meio a jogar nas costas de Ronaldo. Os marroquinos ainda tiveram uma saída como os caracteriza mas tudo se passava entre o meio-campo e o ataque de Portugal, ainda mais reforçado com a entrada de Ricardo Horta para o lugar do lesionado Diogo Dalot. E as tentativas estavam lá, neste caso com Ronaldo a trabalhar bem para o remate de Félix e uma defesa monstruosa de Bono para canto (82′) e mais tarde com Ronaldo a assumir a finalização após uma boa desmarcação para nova defesa do guarda-redes (90′). Cheddira ainda foi expulso com dois amarelos em poucos minutos mas o que tinha nascido torto não iria endireitar-se.