Tem 32 anos e um prémio Goncourt na lapela. Mohamed Mbougar Sarr chegou à literatura com a força de um raio. Nascido em 1990, no Senegal, o autor cresceu no meio da arte literária. As horas passadas com as folhas de Balzac e Victor Hugo existem em força bruta no que escreve, e este A mais secreta memória dos homens ergue-se da tradição literária e vai beber aos grandes clássicos, transportando-os para o texto e dialogando com eles. É o quarto romance do autor, e o tal que levou com o Goncourt em 2021. Depois de estudar Filosofia e Literatura na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris, o autor traz para o que escreve a norma culta.

Mesmo como quem pisca o olho aos amantes dos clássicos, da ideia romântica da busca de um escritor, sempre em diálogo com alcance no passado, sempre a querer meter-se aos ombros de um gigante, no cerne do romance temos um escritor a fazer o seu caminho. Esse caminho faz-se, para além da sua construção, da busca de uma espécie de clássico obscuro: T. C. Elimane, que ninguém sabe bem quem é, escreveu um livro que ninguém encontra. O Labirinto do Inumano ganhou dimensão de mito, para que muito contribui, para além das críticas, o segredo. Ninguém sabe do livro, ninguém sabe do homem, e por isso a sua procura tem o peso de um desejo permeado pela aparente impossibilidade. Para trás, ficam as recensões, os epítetos de “Rimbaud negro” e, para piorar tudo, uma acusação de plágio que tirou o livro de circulação. Foi a partir daí que Elimane desapareceu do mapa. Partindo-se daqui, os contornos sociais não passam ao lado. Perante uma obra aparentemente transformadora, questiona-se se o autor negro será assim tão negro, se o autor africano será assim tão africano, se o autor negro africano terá mesmo escrito aquilo ou copiado de um francês.


Título: “A mais secreta memória dos homens”
Autor: Mohamed Mbougar Sarr
Editora: Quetzal

Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra

Décadas depois, o protagonista, Diégane Latir Faye, deambula por Paris. O leitor, logo desde início, deambula com ele, a busca a sós faz-se sempre a dois. E então Diégane encontra Marème Siga D., escritora maldita, misteriosa, sexy como só a ideia de uma escritora desligada e vista por um olhar descaradamente masculino pode ser. Enrolam-se, mas o que sai dessa primeira noite é outra coisa — o manuscrito de O Labirinto do Inumano. O leitor chega então ao propulsor do livro. O romance muda a cabeça de quem o lê. Diégane faz o seu caminho, agora capaz de ver a partir do topo — Elimane é o gigante em cima de um gigante. Na construção de Diégane, nota-se a formação literária  do autor, já que tudo é pretexto para falar deste ou daquele escritor, desta técnica ou daquela, e ainda de apresentar longos parágrafos que têm ar de recensão ou sociologia da literatura. Basta isto para que o leitor habitual se sinta em casa, já que o livro é o que se propõe ser: um cruzamento entre geografias da francofonia e gerações, a herança literária, o papel de quem herda, os caminhos possíveis a partir de um labirinto já criado.

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Ele bem o diz:

Não sinto em nós que tenhamos consciência ou desejo de uma aventura estética coletiva; nós não somos um movimento; cada um de nós caminha sozinho para o seu destino literário; e, no entanto, tenho a impressão de que há qualquer coisa invisível que nos liga a todos solidamente, e para sempre. (…) Talvez o sentimento difuso de que íamos para uma catástrofe. Talvez a impressão vaga de que devíamos rapidamente dar outro vigor à nossa literatura ou sofrer a humilhação de vir a ser sempre designados como seus assassinos ou, pior, os seus coveiros (…) Talvez o pressentimento espantoso de que alguns de nós enfrentariam durante muito tempo o monstro da literatura enquanto outros se perderiam ou renunciariam pelo caminho.” (p. 63)

A busca de Diégane pela sua obra literária não existe sem reflexões sobre o colonialismo e a relação entre a elite literária francesa e os escritores africanos francófonos, chutados para canto. Percebe-se que esses são assuntos que interessam ao autor, que maquilhou a possibilidade de catequização pegando numa personagem para quem os longos trechos quase ensaísticos fazem sentido. Afinal, Diégane, do ponto de vista da sua construção psicólogica, é principalmente a dúvida e a busca, é o questionamento permanente, uma vez que tudo isto faz parte da sua saga para escrever. Ao partir destas ideias para criar os pontos estruturais do romance, o autor consegue que a atenção do leitor se divida. Por um lado, há interesse nos passos de facto de Diégane, que incluem a relação com Siga D. Aí, vê-se a plasticidade do autor, que consegue criar dois modos de dizer diferentes, mostrando em concomitância o à-vontade de uma e o desconforto de outro, tudo visto pela cabeça do último. Por outro, há a saga interior, que é o que vai fazendo a obra de forma quase errante, como errante é o pensamento, e que é o que permite que o leitor não só siga como seja outra cabeça. Pelo meio, surgem as questões fundamentais da produção literária coetânea: os francófonos de origem africana vêem-se relegados para o solo para que o ocidente os empurra, negando-lhes o cânone ocidental — ou francófono. Não são, deve dizer-se, questões diferentes da que a produção literária enfrenta e sempre enfrentou em tudo o que é minoria ou grupo tratado como minoria. Da mesma forma que a produção masculina se naturalizou como neutra, ou seja, como produção apenas, o mesmo aconteceu com a ideia de produção branca versus outras, ou ocidental versus outras. Assim, a ideia de tradição literária também ganha peso, já que o cânone, em todos os casos, parece ser identitário: não vale a produção literária, mas a produção literária de X, e isto se X for igual a X.

Os pontos altos do romance serão o diálogo que cria, a discussão que incita, mas não passa ao lado a qualidade literária que o autor traz para a exposição dos temas. O que o safa sempre, deve dizer-se, é a criação de uma personagem que tem de ser atormentada por estas questões; caso contrário, o texto seria apenas território para manipular o leitor. Em vez disso, toda a construção literária sabe a angústia em pleno e, com isso, a descoberta. Para mais, Sarr vai insistindo sempre numa colectiva busca a sós, o que faz de cada leitor um Indiana Jones de bibliotecas, e da leitura um mergulho para o escuro — um escuro que mete luz nas coisas. O mesmo acontece com os escritores, que se debatem sempre com a dificuldade de não haver caminho para andar, só floresta fechada a desbastar. Neles, como nos pares, há uma tradição para ajudar, que já passou a anacronismo, e a necessidade de uma originalidade que sabe a salto sem trapézio. A procura de uma voz única é uma experiência colectiva, mas não há uma solução a mais de duas mãos. É o que está inerente não só às personagens do livro ou a todos os escritores, mas a todos os artistas: a repetição de experiência ou de estado não impede cada um de estar totalmente a sós no seu caminho.

Tudo isto Sarr pôde meter num só romance. A mão do autor é firme — firme demais para tão pouca idade. A cultura surpreende, a elegância sabe a gentleman à antiga, e é aqui que se vêem Balzac e Victor Hugo. Aos ombros de gigantes do passado, Sarr meteu luz em cima do presente, nunca descurando a literariedade do texto.

A autora não escreve segundo o novo acordo ortográfico.