Quinze anos depois, eis Ruy Castro de volta à ficção. Pela Tinta-da-china, este é o sexto volume do autor publicado em Portugal, entre romance, biografia e história. Depois de biografar Nelson Rodrigues ou Garrincha, surge este Os perigos do imperador, que vai muito além da sinopse, sendo um projecto mais amplo do que a história de um atentado contra D. Pedro II, imperador do Brasil. Ruy Castro usou alguns factos (as condições da personagem, o tempo, o lugar) e a partir daí fez a magia que os escritores fazem com as mãos.
O que é facto, o que é invenção? Não interessa. A leitura suspende a realidade, e por vezes também suspense a ficção. Assim sendo, mais vale assumir-se que tudo o que se lê é tudo o que existe, sem se balizar os detalhes com o panorama da vida, sem se perguntar – ou se saber – se o atentado para a proclamação da república (ou seja, a tentativa de assassinato de D. Pedro II, à John F. Kennedy) é romance ou vida fora dele. Neste sentido, pegar em Ruy Castro terá de implicar, da parte do leitor, um compromisso com a própria ideia de literatura: existe como força bruta, com direito próprio, para não ser instrumentalizada, sem ser uma resposta a direito à vida. Em vez de a reproduzir, é parte dela.
Indo ao livro: o ano é o de 1876, e D. Pedro II, então imperador do Brasil, embarca num vapor rumo aos Estados Unidos. Ali, comemora-se o centenário da independência, e parece inacreditável que um monarca com ascensão europeia meta ali os pés, coisa que acontece pela primeira vez. O que aparenta ser um mero passeio cultural, para enfeitar ou encher agenda, dá a Ruy Castro uma hipótese de romance a múltiplas vozes e perspectivas caleidoscópicas, que nunca se despem de um sentido de humor surpreendente. Ruy Castro nunca faz por menos: a cada parágrafo, uma surpresa. O tom é sempre despretensioso, e é isso que desarma o leitor. Quem o ler procurando um retrato árido de uma viagem, de um protocolo, de uma formalidade, verá que não há secura que aguente a desfaçatez de ver o que há para ver ao invés de um pathos que sirva para fintar quem lê.
Título: “Os perigos do imperador”
Autor: Ruy Castro
Editora: Tinta-da-china
Páginas: 192
Como poucos (como alguém?), Ruy Castro pega numa personagem-central e, a partir daí, reconstitui a atmosfera não de um, mas de dois países, dando ainda ao leitor, num tom aparentemente casual, a forma como, a partir de um lado, se via o outro. A viagem de D. Pedro II é relatada por James O’Kelly, jornalista do New York Herald, desde a partida do Rio, mas pelo meio ainda há, num romance que se faz de curtos textos, a voz do imperador, recortes de jornais, arquivos de museus, as observações deixadas por um poeta (Joaquim de Sousândrade, residente nos EUA à época da chega de D. Pedro II) e, sobretudo, a voz de um narrador que dá a visão panorâmica da acção, não apenas cosendo mas tecendo o enredo.
Ruy Castro empenha-se tanto na construção destas personagens que consegue dar uma visão panorâmica sobre o que a personagem de D. Pedro II representa no seu mundo, entre outras, através de Deoclecio de Freitas, uma personagem-chave, editor de A Matraca, pasquim através do qual vilipendia publicamente o imperador. A personagem está bem construída, o seu tom zangado é quase palpável, e chega a momentos de pura vida real, como aquele em que escreve mal nome de O’Kelley (“James Kelly”, p. 71), sendo necessário um “[sic]” dentro do texto. Não vá, claro, imputar-se a culpa ao romancista.
Ora, malgrado o ódio que Deoclecio parece ter contra D. Pedro II, que parece uma visão política levada a peito, atirada ao homem, a verdade é que o mero facto de continuar a existir e a publicar sem problemas vai servindo para, na narrativa, se ir assumindo o carácter pacifista do imperador. Leia-se:
‘(…) Sua ausência do solo pátrio fará com que os brasileiros assumam suas responsabilidades e tirem o país da letargia e do atraso a que foi condenado pelo inepto, decrépito e paquidérmico monarca. E, já que conhecera os ianques, que use seu tempo para aprender com eles a pelo menos mandar recolher o lixo das ruas, limpar as praias e debelar a febre amarela. Que observe como as ferrovias americanas cortam o país ao meio e unem seus dois litorais, mesmo tendo de enfrentar desertos, montanhas e até tribos em pé de guerra. E que, em sua visita ao Capitólio, o monarca evite tropeçar nas próprias barbas e se inspire no dinamismo dos norte-americanos para […]’ Seguiam-se mais quarenta e cinco linhas de ataques, agravos, achaques, ofensas e insultos contra o imperador.» (p. 29)
A multiplicidade de vozes permite ainda que o leitor veja visões contraditórias sobre a figura do imperador. Geralmente afável, chega a impressionar nos Estados Unidos pela ausência de protocolo. Em concomitância, A Matraca acaba por ir desempenhando um papel de destaque na recriação de um ambiente, já que imprime um tom de laissez-faire social no Brasil que vai contrastando com a ordem que os dois lados (Brasil e Estados Unidos) vão atribuindo ao lado norte da América. O Brasil é sempre apresentado como relativamente anárquico, e isto tanto em termos políticos como de costumes sociais (ficando os norte-americanos confusos com a horizontalização de hierarquias). Mas, picando a narrativa em vários pontos de vista que compõem o todo, o leitor também tem acesso ao diário do imperador, que vai servindo para registar a pertinência de algumas decisões.
A ideia do grande finale do romance está clara a priori, e é a tentativa de assassinato do imperador numa apresentação no circo Barnum & Bailey. Por trás disto, estarão republicanos brasileiros, que querem destituir o imperador e a monarquia no país. Na trama, temos um poeta, um repórter, o referido Deoclecio de Freitas, a corte imperal, num exercício que é prova da versatilidade suprema de um dos mais habilidosos autores em língua portuguesa. Ora, esta corte permite ainda ampliar o retrato do Brasil feito por Ruy Castro, já que este, sem grandes explicações, deixa patente na acção o sistema de interesses, favores, boatos e intrigas que rondam os pontos em que o poder converge (no caso, a cabeça coroada de D. Pedro II).
O retrato da época e do homem está bem construído, e o narrador trata de uma reconstituição histórica relativamente temperada quando comparada com os exageros de O’Kelly. O livro, pela técnica aplicada – sintaxe simples, frases que são conteúdo, sentido de humor desarmante, sarcasmo permanente –, impulsiona a leitura até ao fim, num ambiente bem construído, com personagens que sabem a gente a sério.
A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.