Os dados fornecidos pela China sobre o número de mortos na atual vaga de infeções por covid-19 estão “certamente aquém” da realidade, disse à Lusa o epidemiologista e estatístico na área médica Ben Cowling. “Os dados são certamente uma subestimação do número real”, afirmou o epidemiologista da Universidade de Hong Kong em entrevista à agência Lusa.

Segundo dados oficiais divulgados no domingo passado, a China registou quase 60 mil mortes nos hospitais ligadas à pandemia da covid-19, desde o desmantelamento da política de ‘zero casos’, no início de dezembro. O fim das restrições resultou numa vaga sem precedentes, que especialistas consideram ter infetado mais de 900 milhões de pessoas, e na sobrelotação do sistema hospitalar do país.

Ben Cowling explicou que os testes laboratoriais de deteção do vírus “deixaram de ser realizados com frequência nos hospitais”, pelo que a “maioria dos casos, hospitalizações e mortes pela doença [na China] não são confirmadas laboratorialmente”. “Isto foi um problema em muitas partes do mundo, mas uma observação única em relação à China é que o país provou que tem capacidade a nível de laboratórios para testar cidades inteiras diariamente”, apontou.

No âmbito da política de ‘zero casos’ de covid-19, que vigorou na China ao longo de quase três anos, várias cidades chinesas impuseram um regime de testes de ácido nucleico obrigatório para toda a população. Centenas de milhões de pessoas no país foram assim testadas para o novo coronavírus com uma frequência quase diária. “A ausência de testes de laboratório agora certamente não se deve à falta de capacidade”, frisou o epidemiologista.

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Ben Cowling considerou que a estimativa de que 900 milhões de pessoas contraíram covid-19 na China, ao longo das últimas semanas, é “plausível”. Isto significa que a maioria da população do país, que tem mais de 1,4 mil milhões de habitantes, adquiriu já imunidade natural ao coronavírus e que o pico da atual vaga já passou.

“Os resultados dos testes feitos por Taiwan a viajantes oriundos da China continental indicam uma tendência de queda na taxa de positivos”, explicou o especialista. Cowling considerou que o número de mortos na China poderia ter sido menor, mas que Pequim optou por um relaxamento “abrupto” das medidas de controlo e por um “salto imediato” de uma fase de contenção para uma fase de recuperação, abdicando de estratégias de mitigação para abrandar a curva de infeções.

“Reduzir a altura do pico epidémico e distribuir os casos por um período de tempo mais longo pode salvar muitas vidas, enquanto os recursos de saúde estão sob forte pressão”, frisou. O epidemiologista considerou que uma “saída planeada, com um cronograma e comunicação claros”, teria permitido um “impacto menor” do que a “súbita reviravolta na política de ‘zero casos'”.

O levantamento das restrições ocorreu após protestos em larga escala, realizados em várias cidades da China. Alguns dos manifestantes gritaram palavras de ordem contra o Partido Comunista e o líder chinês, Xi Jinping, que assumiu a estratégia ‘zero covid’ como um trunfo político e prova da superioridade do modelo de governação autoritário da China, após o país conter com sucesso os surtos iniciais da doença.

“Os hospitais podiam ter sido mais bem preparados para o grande aumento de pacientes, ocorrido no mês passado. Alguns idosos que não estavam vacinados podiam ter sido persuadidos a vacinarem-se, se tivessem recebido uma comunicação mais clara sobre o risco para a sua saúde, uma vez que as restrições fossem levantadas”, considerou Cowling à Lusa.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou, na semana passada, que a China não estava a fornecer números completos de mortes por covid-19 no atual surto, o que impede perceber a verdadeira extensão da doença a nível global.

A China defende que tem partilhado os seus dados “de forma aberta, atempada e transparente” desde o início da pandemia.