“Fonte da Raiva”, texto de Cucha Carvalheiro, que também o encena e interpreta, a estrear esta quarta-feira no Teatro S. Luiz, em Lisboa, resulta do “enxerto” de memórias de infância e do passado de ditadura, numa peça inspirada em Danças a um Deus Pagão, de Brian Friel

Na estrutura da peça “Danças a um Deus pagão”, do dramaturgo britânico nascido na Irlanda do Norte, cuja ação se situa em 1936, na Irlanda rural, Cucha Carvalheiro “enxertou” “memórias felizes” da sua infância, inspiradas em quando passava férias na aldeia beirã de seu pai, Pindelo de Silgueiros, no concelho de Viseu, acrescentou a atriz e encenadora.

Era uma aldeia quase medieval, de granito e das mais pobres de Portugal, o que levou o pai a emigrar para Angola, no início do século XX, onde se revelou um “colono muito especial”, pois “era a favor da independência de Angola e ajudou o Movimento Popular de Libertação de Angola [MPLA]”, observou a encenadora, no final de um ensaio de imprensa da peça.

Sem se tratar “de todo, de um espetáculo autobiográfico”, Cucha Carvalheiro protagoniza a peça, interpretando Amélia, uma mulher filha de mãe branca e pai negro, que regressa às ruínas da casa onde nasceu, na paupérrima aldeia de Fonte da Raiva — exatamente —, e evoca memórias do verão de 1962, quando era uma criança de oito anos, nesse tempo de todas as mudanças, em plena ditadura, entre a Guerra Colonial e a emigração, um ano depois do início do conflito em Angola, da anexação de Goa pela Índia, e do assalto ao paquete Santa Maria, que afrontou a autocracia de Salazar.

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Em palco, num espaço cénico com uma casa em ruínas, restos de uma cozinha, um terreiro, granito e musgo, cruzam-se personagens inspiradas em familiares da autora e situações que recorda. Surgem em “maneiras de dizer” ou no mencionado Entrudo, quando os habitantes da aldeia beirã se mascaravam e iam “lavar a roupa suja na aldeia, que era um momento de terror”.

A origem africana por via materna, a bisavó negra e dois primos direitos, também negros, são igualmente fonte de inspiração da peça.

A emigração em massa ocorrida em Portugal na década de 1960, o trabalho assalariado assegurado, sobretudo, por mulheres, devido ao recrutamento de homens para a guerra, que deixou “noivas” por casar, o Portugal salazarista nos valores, mentalidades e comportamentos são realidades presentes.

Cinco irmãs — a professora primária Assunção, Augusta, Adelaide, Aurora e Ana, mãe solteira (de Amélia) —, o irmão destas, o missionário padre Afonso, o estudante universitário José Morais, negro e pai de Amélia, completam as personagens de “Fonte da Raiva”.

Figura central em “Fonte da raiva” é ainda uma telefonia, pela qual tias e sobrinha ouvem músicas vindas de Lisboa e o programa “Hora da saudade”, no qual são transmitidas mensagens dos soldados portugueses que combatiam em África.

Sobre a pertinência do trabalho com que regressa ao palco onde se estreou como atriz, Cucha Carvalheiro disse que gostava de fazer um espetáculo sobre as suas raízes e a sua vida. O que o originou foi “provavelmente” o “recolhimento” proporcionado pela pandemia de covid-19.

Um recolhimento que a levou a “não fazer nada projetado no futuro”, mas a “ir para trás”, uma possível característica de “envelhecer” ou por se encontrar numa fase em que, “em princípio”, tem “mais passado que futuro”.

Sem assumir discursos dogmáticos, por não serem “nada” o seu “estilo” nem considerar que o “teatro sirva para isso” — por considerar que “o teatro também é entretenimento” —, a atriz e encenadora sustenta ter elaborado um texto com assuntos subliminares “enquadrados num clima de memória infantil”.

Porque, tal como diz o missionário da peça “nós somos os ancestrais ou os antepassados das gerações futuras”, concluiu.

O texto de “Fonte da Raiva” é constituído por cenas curtas intercaladas pela intervenção de Cucha Carvalheiro, que se dirige ao público, num processo em que passado e presente se entrecruzam, “numa tentativa de refazer memórias felizes que escondiam tempos sombrios”.

Além de Cucha Carvalheiro, a interpretar “Fonte da Raiva” estão Bruno Huca, Inês Rosado, Joana Campelo, Júlia Valente, Leonor Buescu, Luís Gaspar e Sandra Faleiro. A assistir na encenação está Miguel Sopas.

A cenografia é Pedro Jardim e Ana Vaz, que também assina os figurinos, o desenho de luz é de Cristina Piedade e a direção musical de Madalena Palmeirim.

Em cena na sala Luis Miguel Cintra até 12 de fevereiro, a peça tem récitas de quarta-feira a sábado, às 20:00, e, ao domingo, às 17:30.