Num mundo obcecado em registar todo o tipo de eventos, não deixa de ser irónico que, muito provavelmente, ninguém saiba dizer quando é que uma gota de chuva caiu pela última vez na cabeça de Burt Bacharach – isto, para quem nunca ouviu este nome cheio de aliterações, é um trocadilho com aquela que é, possivelmente, a canção mais conhecida do autor de “Raindrops Keep Falling on my Head”, que morreu esta semana, aos 94 anos, deixando para trás um legado musical candidato a pedra basilar da pop clássica.
Nada se torna clássico antes de o ser, mas nesse aspeto as canções de Bacharach são como a pescada: antes o ser, já o eram. Se olharmos para algumas das canções que compôs, que chegaram ao topo das tabelas de vendas nos Estados Unidos e em Inglaterra, encontramos melodias que toda a gente sabe trautear, como “I Say a Little Prayer” (cantada por Dionne Warwick, lançada em 1968, número 4 no UK e nos EUA), “Do You Know the Way to San Jose” (ainda Dionne Warwick em 1968, 8.ª no UK e 10.ª nos EUA), e – claro – “Raindrops Keep Fallin’ on my Head”, que chegou às tabelas de vendas com múltiplas vozes, mas cujo lugar mais alto pertenceu à garganta de B.J. Thomas (2.º nos EUA, em 1970).
Isto não significa que estas sejam as suas melhores canções: quem tiver picado o álbum Motown Salutes Bacharach (2002) encontra tanto os maiores êxitos como canções mais obscuras do compositor adaptadas a um registo mais soul – o mais branco dos autores a ser cantado pelas estrelas da música negra, numa prova (acaso fora necessária uma prova) de que na pauta as cores não interessam por aí além.
Talvez tenham notado que nos três parágrafos anteriores falámos em autor (Bacharach) e vozes (várias): muito antes de Britney Spears ou as Spice Girls recorrerem a Matt Rowe e Richard Stannard para escreverem os seus êxitos, muito antes de Kelis recorrer aos Neptunes para lhe oferecer canções que trepassem as tabelas de vendas, já a indústria da pop recorria a compositores para criarem as canções que andariam nos lábios dos adolescentes e jovens da época.
Se hoje um êxito é Shakira a detonar a reputação do seu ex-marido, Piqué, ao som de reggaeton com pinta de ser banda-sonora de casa de meninas cujos frequentadores pouco pratiquem a atividade de tomar banho, no tempo em que Bacharach era rei as protagonistas costumavam ser mulheres, mas o tema era ligeiramente diferente: uma espécie de alento da ideia de poder ser amada, aquilo a que os anglo-saxónicos apelidam de “longing” por outra pessoa, que eventualmente já não nutre por nós o mesmo sentimento amoroso que ainda nutrimos por ela (isto acontece, miudagem).
O mérito das palavras pode até não ser de Bacharach, já que estas estavam a cargo de Hal David, que escrevia as letras das canções, e com quem Bacharach se zangou à conta de – como é habitual – dinheiro, mas estou convencido de que aquelas melodias resultariam mesmo que em vez de “I say a little prayer for you” o refrão fosse composto da descrição de uma sopa de nabiças (o que, convenhamos, poderia até ser mais útil, porque toda a gente sabe o que é um coração partido, mas nem toda a gente sabe o que é uma boa sopa de nabiças).
Ninguém vos vai perguntar qual a palavra fundamental do parágrafo anterior e se responderam “nabiças” estão quase certos – mas é melodia. Aquilo a que chamamos hoje pop não é mais do que uma melodia, de preferência curta, simples de memorizar e reproduzir. No tempo de Bacharach, na pena de Bacharach, era outra coisa: mais insinuante, elegante, sinuosa e sensual. A mesma curva, percorrida por um FIAT Punto com 22 anos ou um Volvo, permite duas experiências diferentes e a de Bacharach não era feita por um FIAT Punto, um ótimo carro não-burguês, mas ainda assim: não-burguês.
A música de Bacharach era uma espécie de epítome da burguesia: tinha ido beber à Tin Pan Alley, um coletivo de compositores, arranjadores e produtores que sintetizaram a história da música americana numa sequência formidável de canções com apelo comercial, e daí recolhera o apelo melódico, o gosto pelos arranjos tão luxuosos que poderiam, facilmente, valer dois ou três T1s na baixa. O que Bacharach trouxe foi um aprumo de elegância, a sapiência cristalina de quando uma canção deve subir ou descer, o apuro da acumulação dramática que conduz ao geiser do refrão – um artesanato e uma subtileza que parecem ausentes mundo de hoje, em que todos os cantores e MCs parecem afirmar que são incríveis e bebem o melhor champanhe.
Nascido em Kansas City, no Missouri, a 12 de maio de 1928, Bacharach foi parar a Nova Iorque, e desde cedo que se destacou não pelas habituais características físicas (olhos bonitos, lábios grossos, costas espadaúdas), mas por uma mais discreta: o seu inacreditável ouvido, que lhe permitia reproduzir qualquer melodia ao piano, desde tenra idade. O que não invalida que não tenha tido de trabalhar pelo seu talento: na Mannes School of Music, em Nova Iorque, estudou composição e orquestração – posteriormente estudou na Music Academy of the West, em Santa Barbara, Califórnia.
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Mas Bacharach não era apenas um prodígio do piano, nem estava particularmente interessado em tocar muitas notas muito depressa, porque desde cedo compreendeu que uma canção não era uma competição de virtuosismo, mas sim um meio para um fim: transmitir uma emoção. E essa noção pode ser separada do seu consume ávido de música, que ia da já mencionada pop clássica ao jazz, passando pelo r’n’b.
Não é por acaso que tantas estrelas de r’n’b cantaram Bacharach – e, na minha modestíssima mas absolutamente correta opinião (um caso único de opinião modestíssima mas que por acaso está absolutamente correta), as melhores versões das composições de Bacharach são de estrelas de r’n’b. (Um pequeno aparte que pode vir a ajudar-vos a viver: tenham sempre opiniões modestíssimas mas absolutamente corretas, desde que tenham a noção de que tal só é possível se – por mero acaso – tiverem a mesma modestíssima mas absolutamente correta opinião que eu).
Bacharach teve êxito durante décadas, mas talvez o final dos ano 60, início dos 70, tenha sido a época em que mais vezes viu as suas canções chegarem às tabelas de vendas – o que não deixa de ser irónico tendo em conta que essa foi a época em que o rock se tornou rebelde, desaguando no No Future dos Pistols. E, porque as ironias e os twists nunca têm fim, um dos expoentes da new wave inglesa, Elvis Costello, acabou a colaborar com Bacharach no lindíssimo Painted From Memory. A mulher de Costello, Dianna Krall, também cantou Bacharach, mas vamos esquecer isso.
O hip-hop também o homenageou e da melhor forma: samplando as versões que diversos intérpretes fizeram das suas composições. Mos Def samplou “Anyone who Had a Heart” na versão de Dionne Warwick), Lupe Fiasco usou “The Last One to be Loved”, entre muita outra gente, inclusiva de outros géneros que não o hip-hop, como os Royksopp ou os Pizzicato Five ou os Yo La Tengo.
Dizem que ninguém morre enquanto houver quem se lembre de nós, o que – no caso de Bacharach – implicaria uma vida possivelmente eterna, e para isso nem era preciso a obra toda, só estas cinco canções: “Walk On By”, “The Look Of Love”, “Don’t Go Breaking My Heart”, “(There’s) Always Something There to Remind Me” e, magnum-opus-hossana-nas-alturas-como-éque-isto-é-possível, a genial “Make It Easy On Yourself”.
A teoria deve estar certa: ao fim e ao cabo, como é que poderemos esquecer-nos de Burt Bacharach enquanto houver canções assim para nos lembrarmos dele?