Percebemos a trompeta, porque é com elas que se anunciam as coisas importantes e pouca literatura dos últimos tempos merece tanto como estes contos ser considerada importante. Ao mesmo tempo, a palavra fere os ouvidos porque contradiz a maravilhosa discrição destas histórias.

Para dizer a verdade, o livro não é um prodígio técnico. Há algumas construções gramaticais algo desleixadas, expressões que não estão à altura do texto e alturas em que o cuidado com o vocabulário se transforma numa versão preguiçosa e algo burocrática dele mesmo; até a premissa fundamental dos contos acaba, em certos aspetos, por limitá-los. Isto é, os contos aqui reunidos estão construídos em torno de mudanças súbitas de ponto de vista; de acontecimentos, decisões, visões, que funcionam quase como momentos charneira, em que a vida não pode ser encarada da mesma maneira que era antes. Ora, um dos pontos fortes das várias histórias consiste na progressão, no mapeamento do ponto de vista anterior a esse grande momento. O facto de a mudança se dar subitamente, de um aspirante a intelectual passar, num repente, a incendiário, perturba o melhor ritmo das histórias. O fascínio por estes momentos é compreensível; no entanto choca com o melhor ritmo dos contos.

Dito isto, importa salientar o principal. O livro poderia ter todos os defeitos. A força dele, porém, é de outra ordem. Os grandes livros não parecem responder às exigências da ficção mas a uma coisa muito maior, que é a revelação particularmente inspirada de uma centelha de verdade sobre o homem. Ora, há estilos que parecem miraculosamente dotados desta capacidade para apreender e revelar algum mistério existencial. Isto não se deve apenas a um modo de análise mais arguto ou mais inteligente; há qualquer coisa no modo de exprimir que o torna mais propício a revelar algum tipo de coisa. Isto é, podemos ter consciência de que há um esmagamento próprio de uma espécie de tradição intelectual capaz de nos oprimir; não é óbvio, no entanto, que o modo de Joyce o exprimir seja particularmente atreito a revelar este esmagamento, só depois de ele o fazer é que o sabemos. O que temos neste livro é, também, um desses estilos sobre os quais a única coisa que importa realmente frisar é a sua capacidade de entrar em algo verdadeiro.


Título: “A trombeta vaga”
Autor: Simão Lucas Pires
Editora: Quetzal
Páginas: 160

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Há pormenores engraçados: Simão Lucas Pires recorre várias vezes a um peculiar tipo de humor que passa pela colagem, à boca das personagens, de frases excessivamente estilizadas que denunciam o lugar-comum de uma ideia, como o texto do poeta que lamenta a “época anormalmente fatídica para as terras da minha Ornizes, onde têm falecido, nos últimos meses, demasiados dos seus velhos anciãos, num fluir das águas do tempo que, sendo natural, não deixa de entristecer”. Há outros pormenores bonitos, mas cuja beleza é dada pela transparência.

Não se trata de uma língua poderosa, com frases sonantes ou imagens de alta inspiração poética. É isso que torna tão difícil precisar o que é que faz deste um texto tão bonito. Trata-se de um daqueles fenómenos próprios da literatura, em que o compromisso com alguma coisa de outra ordem produz as manifestações estilísticas mais interessantes. Aquela característica que Eliot identificava em Montaigne, uma espécie de nevoeiro, descreve bem aquilo que encontramos na prosa de Simão Lucas Pires. Há uma pátina que contamina tudo o resto que ultrapassa as palavras escritas.

Qual é, então, esse grande trunfo que faz dos passeios descritivos mais do que um olhar cinematográfico e da história de um regresso a uma vila de praia – de resto, o melhor conto do livro — mais do que uma vila de praia? O fator subordinante de tudo isto é o modo como toca uma série de disposições positivas que parecem ter sido esquecidas pelo modo de fazer literatura. Estes são contos cheios de bondade, de ternura por crianças, de compaixão, e isso ultrapassa e contamina até as características antagónicas de tudo isto. É claro que há compaixão ou bondade em toda a literatura de todos os tempos; no entanto, estas aparecem-nos, na literatura contemporânea, quase sempre contaminados por outras disposições que as legitimam.

O que é admirável nestes contos é que são uma literatura de formas puras. A ideia de que a bondade ou a comoção surgem mais nítidas numa descrição de uma viagem de carro em que se noticia um crime é uma ideia surpreendente. A naturalidade com que ela nos aparece em Simão Lucas Pires mostra até que ponto ele conseguiu aqui um grande estilo literário e muito mais do que isso. Os grandes estilos são difíceis de captar porque não parecem estilo – parecem uma verdade evidente sobre a vida. A vida como aparece aqui apanhada por Simão Lucas Pires tem esse lado evidente, simples e puro, como só se encontra nos grandes livros.