No número 2 da Rua Damasceno Monteiro, em Lisboa, existe agora a pintura mural de um estendal de roupa, quase vazio, onde se vislumbram peças de um uniforme militar. A guerra continua, vai continuar, relembra-nos simbolicamente Kuril Chto, nome artístico de Andrei Zaitsev, artista russo radicado em Lisboa, desde há quatro anos, que projetou o mural que agora ocupa uma parede do bairro da Graça. Pintado durante a madrugada de 23 para 24 de fevereiro, a obra marca o dia em que, precisamente há um ano, as tropas russas invadiram a Ucrânia. “Serve como lembrança desse evento trágico”, diz ao Observador o artista. “É um olhar sobre um acontecimento que está no nosso dia-a-dia desde então e que não conhece fronteiras.”
Com o título “A guerra ainda não acabou”, o mural nasce com o apoio da GAU – Galeria de Arte Urbana do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, que em diálogo com a comunidade artística promove o graffiti e a street art nas ruas da cidade. Em conjunto com a curadora Diana Sousa, escolheram fazê-lo num “local central da capital, marcado pela multiculturalidade”, que nos últimos anos se tornou numa galeria de arte urbana. A rua onde se pode ver o mural foi escolhida também por se tratar de um sítio “incontornável”, dizem os seus promotores, onde confluem o “Ser Poeta” de Florbela Espanca e os azulejos com estrofes de Sophia de Mello Breyner e Natália Correia.
Na reflexão por detrás do estendal de roupa está, simultaneamente, uma reflexão sobre a guerra que voltou a marcar o continente europeu e uma homenagem a Portugal. A roupa estendida surge como uma das primeiras memórias do artista aquando da sua chegada a Lisboa. “Havia roupa estendida em cada prédio e estendais em todas as casas. Era uma característica com a qual não estava familiarizado”, explica. Na entrevista ao Observador – numa chamada telefónica desde Nova Iorque, nos EUA, onde está a concluir os estudos em pintura na New York Academy of Art –, Kuril Chto explica que “as pessoas em Portugal, por aquilo que viveram durante a ditadura, sabem que há que lutar pela liberdade”. E este mural, realça, é o continuar de um percurso artístico também ele marcado pela censura e a opressão que conheceu na Rússia, já sob a liderança política de Vladimir Putin.
O exílio ainda antes da guerra
Andrei Zaitsev nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1989. Em 2012 fundou, geriu e fez curadoria do Museu da Arte de Rua, projeto criado com o seu pai Dimitri, espaço focado na ideia de mudança e que rapidamente se tornou incómodo perante as forças governamentais. “Vivemos em um espaço morto, construído há muitos anos”, disse Dmitri Zaitsev à revista The New Republic na abertura da exposição anual do museu em meados de maio de 2014. “Nada de novo foi construído em 100, 150 anos. É como se estivéssemos de costas para o futuro.” Nesse período, criou inicialmente um coletivo artístico a que chamou Kuril Chto (que traduzido do russo significa “o que é que fumaste?”) e que mais tarde se desfez, passando o artista a usar o mesmo termo a título individual.
Essa dissolução acontece também em virtude da crescente onda de protestos, da qual fez parte, sendo que o artista teve que abandonar o país e o projeto em 2017 devido à oposição ao regime, à sua postura crítica sobre a anexação da Crimeia e à cooperação com os artistas ucranianos que tinha levado a exibir no museu. Num processo de emigração, depois de passar por países como Israel, Itália e Espanha, decidiu radicar-se em Lisboa, onde tem podido criar livremente sobre os temas que o perturbam e que nunca deixaram de estar presentes no seu processo criativo: a política e a violência. Na sua obra, que deambula entre a pintura, a instalação e a performance, Kuril Chto procura objetos do dia-a-dia, reproduzidos em massa, para revelarem os mecanismos de funcionamento da civilização atual. O artista diz estar ligado aquele que é o legado da pop art, mas por oposição, tenta trabalhar esses mesmos objetos do quotidiano fora do seu contexto habitual – colocando um uniforme militar num estendal de roupa que pode estar, afinal de contas, na casa de qualquer pessoa comum, a título de exemplo.
Numa entrevista concedida à revista Umbigo, em 2022, dizia que a sua arte é resposta e consequência dos acontecimentos mundiais que tem experienciado. “As obras estão a tornar-se cada vez mais politizadas. Não sou e não tenciono ser um ativista político. Interessava-me por outros assuntos antes da guerra, mas agora na minha prática artística só posso falar sobre o conflito. Se a situação fosse menos grave, abordaria outras questões”, sintetiza. Por seu lado, Diana Sousa considera que há na obra deste jovem russo “uma postura crítica face a um governo que censura, constantemente, o direito à liberdade de expressão”. Também por isso se quis, desde logo, juntar ao projeto deste simbólico mural como mediadora entre o artista e a galeria. “Esperamos que possa suscitar diálogo e provocar uma reflexão sobre os conflitos bélicos, que ultrapassam todas as fronteiras terrestres.”
À medida que o tempo avança e o conflito armado parece não ter resolução, Kuril Chto espera, acima de tudo, que o mural seja também reflexo de que é possível manter a esperança. Refere-se não apenas ao fim da invasão, mas também a uma mudança no seu país, ao qual ainda não regressou desde 2017. “Quero voltar para lutar quando perceber que é possível mudar este regime. Neste momento, não creio que isso seja possível”, salienta. Os anúncios diários de mais catástrofes já não o estremecem, mas dão forma a uma banda sonora da vida quotidiana, que se tornou central no seu trabalho. Escolhe tratá-la a partir de objetos presentes na vida de cada pessoa, num gesto que é de ironia mas também para ridicularizar o absurdo “daqueles que acham que têm poder para fazer uma guerra, sem sofrer as consequências disso.”
Mantendo um foco na rotina e em práticas DIY, a particularidade do seu trabalho artístico reside no humor como forma de abordar questões sociopolíticas tão grandes e por vezes dolorosas como o patriotismo ou a cacofonia informativa. De regresso a Portugal e ao que descreve como um “local pacífico” e o “país mais livre que conhece”, quer lembrar-nos que os uniformes militares estão apenas no estendal para rapidamente voltarem ao ativo, mas isso não indica que essa mesma rotina não possa terminar. A guerra, explica, integrou-se na “paisagem dos costumes”, mas há formas de luta e resistência perante a opressão que podem começar em qualquer canto do mundo – a começar por este mural.