886kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

“A guerra ainda não acabou” diz Kuril Chto: um artista urbano russo e a homenagem à Ucrânia em Lisboa

Este artigo tem mais de 1 ano

Kuril Chto deixou a Rússia em 2017, confessa que quer voltar para "lutar pela mudança" mas admite que "agora não é possível". Em Lisboa (e não só) apoia a Ucrânia.

“Serve como lembrança desse evento trágico”, diz ao Observador o artista. “É um olhar sobre um acontecimento que está no nosso dia-a-dia desde então e que não conhece fronteiras”
i

“Serve como lembrança desse evento trágico”, diz ao Observador o artista. “É um olhar sobre um acontecimento que está no nosso dia-a-dia desde então e que não conhece fronteiras”

ANA BARROS/OBSERVADOR

“Serve como lembrança desse evento trágico”, diz ao Observador o artista. “É um olhar sobre um acontecimento que está no nosso dia-a-dia desde então e que não conhece fronteiras”

ANA BARROS/OBSERVADOR

No número 2 da Rua Damasceno Monteiro, em Lisboa, existe agora a pintura mural de um estendal de roupa, quase vazio, onde se vislumbram peças de um uniforme militar. A guerra continua, vai continuar, relembra-nos simbolicamente Kuril Chto, nome artístico de Andrei Zaitsev, artista russo radicado em Lisboa, desde há quatro anos, que projetou o mural que agora ocupa uma parede do bairro da Graça. Pintado durante a madrugada de 23 para 24 de fevereiro, a obra marca o dia em que, precisamente há um ano, as tropas russas invadiram a Ucrânia. “Serve como lembrança desse evento trágico”, diz ao Observador o artista. “É um olhar sobre um acontecimento que está no nosso dia-a-dia desde então e que não conhece fronteiras.”

Com o título “A guerra ainda não acabou”, o mural nasce com o apoio da GAU – Galeria de Arte Urbana do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, que em diálogo com a comunidade artística promove o graffiti e a street art nas ruas da cidade. Em conjunto com a curadora Diana Sousa, escolheram fazê-lo num “local central da capital, marcado pela multiculturalidade”, que nos últimos anos se tornou numa galeria de arte urbana. A rua onde se pode ver o mural foi escolhida também por se tratar de um sítio “incontornável”, dizem os seus promotores, onde confluem o “Ser Poeta” de Florbela Espanca e os azulejos com estrofes de Sophia de Mello Breyner e Natália Correia.

Na reflexão por detrás do estendal de roupa está, simultaneamente, uma reflexão sobre a guerra que voltou a marcar o continente europeu e uma homenagem a Portugal. A roupa estendida surge como uma das primeiras memórias do artista aquando da sua chegada a Lisboa. “Havia roupa estendida em cada prédio e estendais em todas as casas. Era uma característica com a qual não estava familiarizado”, explica. Na entrevista ao Observador – numa chamada telefónica desde Nova Iorque, nos EUA, onde está a concluir os estudos em pintura na New York Academy of Art –, Kuril Chto explica que “as pessoas em Portugal, por aquilo que viveram durante a ditadura, sabem que há que lutar pela liberdade”. E este mural, realça, é o continuar de um percurso artístico também ele marcado pela censura e a opressão que conheceu na Rússia, já sob a liderança política de Vladimir Putin.

O exílio ainda antes da guerra

Andrei Zaitsev nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1989. Em 2012 fundou, geriu e fez curadoria do Museu da Arte de Rua, projeto criado com o seu pai Dimitri, espaço focado na ideia de mudança e que rapidamente se tornou incómodo perante as forças governamentais. “Vivemos em um espaço morto, construído há muitos anos”, disse Dmitri Zaitsev à revista The New Republic na abertura da exposição anual do museu em meados de maio de 2014. “Nada de novo foi construído em 100, 150 anos. É como se estivéssemos de costas para o futuro.” Nesse período, criou inicialmente um coletivo artístico a que chamou Kuril Chto (que traduzido do russo significa “o que é que fumaste?”) e que mais tarde se desfez, passando o artista a usar o mesmo termo a título individual.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Essa dissolução acontece também em virtude da crescente onda de protestos, da qual fez parte, sendo que o artista teve que abandonar o país e o projeto em 2017 devido à oposição ao regime, à sua postura crítica sobre a anexação da Crimeia e à cooperação com os artistas ucranianos que tinha levado a exibir no museu. Num processo de emigração, depois de passar por países como Israel, Itália e Espanha, decidiu radicar-se em Lisboa, onde tem podido criar livremente sobre os temas que o perturbam e que nunca deixaram de estar presentes no seu processo criativo: a política e a violência. Na sua obra, que deambula entre a pintura, a instalação e a performance, Kuril Chto procura objetos do dia-a-dia, reproduzidos em massa, para revelarem os mecanismos de funcionamento da civilização atual. O artista diz estar ligado aquele que é o legado da pop art, mas por oposição, tenta trabalhar esses mesmos objetos do quotidiano fora do seu contexto habitual – colocando um uniforme militar num estendal de roupa que pode estar, afinal de contas, na casa de qualquer pessoa comum, a título de exemplo.

Kuril Chto procura objetos do dia-a-dia, reproduzidos em massa, para revelarem os mecanismos de funcionamento da civilização atual. O artista diz estar ligado aquele que é o legado da pop art, mas por oposição, tenta trabalhar esses mesmos objetos do quotidiano fora do seu contexto habitual

ANA BARROS/OBSERVADOR

Numa entrevista concedida à revista Umbigo, em 2022, dizia que a sua arte é resposta e consequência dos acontecimentos mundiais que tem experienciado. “As obras estão a tornar-se cada vez mais politizadas. Não sou e não tenciono ser um ativista político. Interessava-me por outros assuntos antes da guerra, mas agora na minha prática artística só posso falar sobre o conflito. Se a situação fosse menos grave, abordaria outras questões”, sintetiza. Por seu lado, Diana Sousa considera que há na obra deste jovem russo “uma postura crítica face a um governo que censura, constantemente, o direito à liberdade de expressão”. Também por isso se quis, desde logo, juntar ao projeto deste simbólico mural como mediadora entre o artista e a galeria. “Esperamos que possa suscitar diálogo e provocar uma reflexão sobre os conflitos bélicos, que ultrapassam todas as fronteiras terrestres.”

À medida que o tempo avança e o conflito armado parece não ter resolução, Kuril Chto espera, acima de tudo, que o mural seja também reflexo de que é possível manter a esperança. Refere-se não apenas ao fim da invasão, mas também a uma mudança no seu país, ao qual ainda não regressou desde 2017. “Quero voltar para lutar quando perceber que é possível mudar este regime. Neste momento, não creio que isso seja possível”, salienta. Os anúncios diários de mais catástrofes já não o estremecem, mas dão forma a uma banda sonora da vida quotidiana, que se tornou central no seu trabalho. Escolhe tratá-la a partir de objetos presentes na vida de cada pessoa, num gesto que é de ironia mas também para ridicularizar o absurdo “daqueles que acham que têm poder para fazer uma guerra, sem sofrer as consequências disso.”

Mantendo um foco na rotina e em práticas DIY, a particularidade do seu trabalho artístico reside no humor como forma de abordar questões sociopolíticas tão grandes e por vezes dolorosas como o patriotismo ou a cacofonia informativa. De regresso a Portugal e ao que descreve como um “local pacífico” e o “país mais livre que conhece”, quer lembrar-nos que os uniformes militares estão apenas no estendal para rapidamente voltarem ao ativo, mas isso não indica que essa mesma rotina não possa terminar. A guerra, explica, integrou-se na “paisagem dos costumes”, mas há formas de luta e resistência perante a opressão que podem começar em qualquer canto do mundo – a começar por este mural.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.