A historiadora Anne Applebaum, vencedora do Prémio Pulitzer, considera que o Presidente russo, Vladimir Putin, começa a usar métodos do império soviético, na repressão da oposição ao seu regime, embora veja diferenças na forma como usa a propaganda.
Em entrevista à Lusa a propósito do seu livro “A Cortina de Ferro — A Destruição da Europa de Leste”, lançado em Portugal na quinta-feira pela Bertrand, a historiadora, especializada em comunismo e Europa pós-comunista, acredita que líder russo “está agora a começar a usar os mesmos métodos” da antiga União Soviética, ao não permitir divergências sobre a forma como exerce o poder, sobretudo desde a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro do ano passado.
Na sua presidência, segundo a professora na London School of Economics, Putin tolerou “por um longo tempo uma certa dose de dissidência, desde que esta não fosse muito popular”, ao nível de partidos políticos ou imprensa independentes. “Isso começou a mudar e, no último ano, tornou-se muito dramático desde que a guerra começou”, sustentou, acrescentando que “agora sinais muito pequenos de dissidência ou desacordo com a política de guerra podem ter consequências muito drásticas”.
Anne Applebaum deu um exemplo recente de uma aluna, do 6.º ano, com cerca de 12 ou 13 anos, que fez um desenho antiguerra na sala de aula: “É filha de um pai solteiro. Ele foi preso, e julgo que ela foi levada para um orfanato”.
Apontando que estes métodos sugerem “reminiscências dos tempos soviéticos”, no controlo total da vida e opinião pública, a autora vê no entanto diferenças na forma como o Presidente russo usa a sua propaganda.
A propaganda soviética “tentava fazer com que as pessoas se envolvessem numa espécie de projeto soviético para criar o futuro”, mas a de Putin “é projetada para fazer as pessoas sentirem-se apáticas, entediadas e desinteressadas”, e “com medo de se envolver em política”, envolvendo piadas sobre o ocidente e a Ucrânia e evitando perguntas muito profundas.
Noutro ponto de contacto com o período soviético – que investigou com várias obras publicadas, incluindo “Gulag”, Prémio Pulitzer em 2004 – a historiadora disse não ser nenhum mistério que Putin “deixou muito claro que está interessado em recriar um império russo” nos antigos territórios soviéticos.
“Ele acha que tudo o que foi conquistado pela União Soviética – e eu incluiria a Alemanha de Leste – é território natural russo. Acho que também está particularmente interessado na Ucrânia e com raiva da Ucrânia porque os ucranianos desafiaram com sucesso várias tentativas de que a sua política fosse ‘russificada’ e têm continuamente pressionado para criar uma democracia liberal”, observou.
“Esse tipo de retórica, a retórica democrática, é exatamente o que Putin receia em casa”, frisou.
Com o fim da guerra fria, houve uma ilusão de que a Rússia acabaria por pertencer ao espaço democrático global e “era justo esperar mudanças, e certamente havia russos que queriam que o seu país fosse diferente e muitos trabalharam para torná-lo diferente”.
No entanto, nos últimos 10 ou 15 anos, “tem sido bastante claro que a Rússia não seria uma democracia, mas uma ameaça para os seus vizinhos”, apontou Anne Applebaum, lembrando a crise na Geórgia, em 2008, e que a primeira invasão russa da Ucrânia começou em 2014, para além de “ameaças à Polónia, aos Estados Bálticos e até à Suécia, que têm sido bastante frequentes e repetidas ao longo dos anos”, e que deram a esses países “boas razões” para se preocuparem com as intenções de Moscovo.
Apesar da ofensiva russa lançada há mais de um ano na Ucrânia, a situação no terreno poderá conduzir a mudanças em Moscovo, em que “as vitórias militares ucranianas no sul, e talvez especialmente na Crimeia, possam finalmente afetar o equilíbrio de poder” e evoluções no próprio Kremlin, mas todo o quadro é incerto.
É possível que os russos entendam que o esforço já não vale a pena, como no passado a França fez em relação à Argélia, ou Portugal em relação às suas colónias (embora, após um golpe militar que derrubou um regime ditatorial), comparou.
“Se a Rússia chegar a esse tipo de conclusão que a maioria dos países europeus fez há muitas décadas, então a guerra estará acabada. Portanto, não um conflito congelado, não apenas temporariamente parado, mas realmente terminado”. E, nesse quadro, o futuro do líder russo é outra incerteza: “Se está a perguntar o que vem depois de Putin, a resposta é que, claro, eu não sei e ninguém sabe”, afirmou, comentando, porém, que “algum tipo de mudança de poder ou algum tipo de mudança de pensamento tem de acontecer”.
“Se isso acontece porque Putin acorda de manhã e muda de ideias depois, ou porque ele cai de uma janela, ou porque há um golpe de Estado, eu não sei. Mas é nesse momento que haverá uma mudança definitiva de direção que teremos para o fim da guerra”, afirmou, apesar de, mais uma vez, a situação atual não permitir previsões acabadas, porque a guerra só “vai terminar quando alguém ganhar”.