A bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Alexandra Bento, quer que se equacione a fixação de tectos máximos para os preços de alguns alimentos, nomeadamente as hortifrutícolas. Esta é uma das categoria de bens essenciais cujos preços mais têm aumentado à conta da inflação e em que também já se regista um maior défice de consumo em Portugal.

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Em entrevista ao Observador, a bastonária explicou que esta é uma das medidas legislativas que tem colocado em cima da mesa no contacto com os decisores políticos e com os parceiros da indústria alimentar. A todos tem pedido “mão forte”, “clareza e transparência”. Porque as margens de lucro têm sido “imorais”, classificou:

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É completamente incompreensível que tenhamos uma inflação de 8,2%, mas termos um aumento de preços na ordem dos 20% a 30%. Quem está a ficar com esta margem de lucro? Será a indústria alimentar, o distribuidor ou as superfícies comerciais, por exemplo? Não se pode adensar esta incerteza.

Alexandra Bento já tinha sugerido a eliminação do IVA (imposto de valor acrescentado) em alguns produtos alimentares essenciais — uma sugestão que já constava na proposta que a Ordem dos Nutricionistas entregou à Assembleia da República em outubro, quando se debatia o Orçamento do Estado de 2023.

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O governo espanhol anunciou a implementação desta medida no fim do ano passado, mas o efeito nas carteiras dos cidadãos foi praticamente nulo: o valor do IVA foi incorporado no preço dos alimentos que ficaram com IVA a 0%. Essa crítica foi tecida por cá por Fernando Medina, ministro das Finanças:

Tivemos este debate há uns meses e, na altura, a conclusão a que o Governo chegou foi a de que seria mais benéfico fazer um apoio direto ao rendimento das famílias”, afirmou Medina numa conferência de imprensa poucos dias depois do anúncio do governo espanhol.

Agora, Alexandra Bento responde às críticas: é necessário criar medidas-travão que impeçam este fenómeno. As fiscalizações da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), que têm denunciado as margens de lucro registadas com o aumento do preço dos alimentos e as diferenças entre o que se passa na caixa do supermercado e o que constava nas etiquetas, devem ser expandidas nesse sentido.

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É que a literacia alimentar e nutricional, embora seja “a base” para enfrentar o problema, já não basta. Um estudo efetuado pela própria Ordem dos Nutricionistas em outubro do ano passado concluiu que uma pessoa bem informada sobre como fazer boas escolhas alimentares pode gastar seis euros por dia em refeições — com “muita disciplina” e “muita ginástica”, ressalva Alexandra Bento.

Mas isso era com os preços praticados há menos de meio ano. Agora, a mesma pessoa já gasta 7,20 euros diariamente com alimentação. São 216 euros por mês em vez dos 180 euros que se gastavam há cinco meses.  Ao fim de um ano, os 2.160 euros que se investia em comida ao longo de 12 meses transformam-se em 2.592. Mais 432 euros do que as estimativas iniciais.

É quase o mesmo valor que, de acordo com os cálculos da Ordem dos Nutricionistas, uma família com dois adultos a auferir o ordenado mínimo e com um filho adolescente poderia poupar caso o IVA  fosse levantado aos alimentos que já têm uma taxa reduzida de 6%. Depois de compararem os preços praticados em várias superfícies comerciais em outubro de 2021, os nutricionistas chegaram à conclusão que um cabaz de uma semana de refeições poderia ficar cerca de 400 euros mais barato ao fim do ano.

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“Podemos achar que é pouco. Mas é dinheiro”, sublinha Alexandra Bento. É, na verdade, o equivalente a poupar quase metade do ordenado mínimo nacional que entrou em vigor a 1 de janeiro deste ano.

São contas como esta que levam a bastionária da Ordem dos Nutricionistas a crer que “os portugueses devem estar a ter mais dificuldade de acesso aos alimentos e podem, por ventura, ter escolhas alimentares menos oportunas”: “As pessoas não podem chegar ao fim do dia com uma sensação de barriga vazia e podem ser levadas a escolher o que está mais barato na prateleira”. E o que está mais barato, muitas vezes, é a chamada “comida de plástico”.

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De acordo com Alexandra Bento, não há dados suficientemente atualizados que permitam saber se este comportamento já está a acontecer. O último Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física, que permite aferir o tipo de alimentação que a população portuguesa tende a consumir, é de 2015. O Ministério da Saúde está a preparar-se para repetir o estudo em breve, mas a bastonária insiste que isso tem de acontecer “já, mesmo já”.

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Aliás, a nutricionista defende que o risco de insegurança alimentar pode ser tão elevado neste momento que “está na hora de se fazer o que se fez na pandemia”: implementar o REACT-COVID, um instrumento de inquérito rápido que a Direção-Geral da Saúde (DGS) usou para mensurar quem estava em dificuldades económicas de tal maneira profundas que já não consegue seguir uma alimentação saudável.

Os dados desses últimos dois estudos revelaram o impacto da Covid-19 nessa área. Em 2015, uma em cada 10 pessoas (10%) estava em risco de insegurança alimentar. Em 2020, era já quase um terço da população (32,7%). Agora, na falta de números, a bastonária alerta para outros factos: o preço tem influência nas escolhas alimentares dos portugueses e o ritmo a que ele tem aumento “é de levar as mãos à cabeça”.