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Albert Serra: “No futuro, o mundo será uma colónia dos ricos”

Este artigo tem mais de 1 ano

“Pacifiction” coloca o realizador em modo “Apocalypse Now”, com a polinésia francesa como local-tipo dos tempos. Foi o filme do ano para a "Cahiers du Cinéma" e chegou também aos cinemas portugueses.

Benoît Magimel interpreta "De Roller". "Pacifiction" tem o dom — entre outros — de confundir ator e personagem de forma magistral
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Benoît Magimel interpreta "De Roller". "Pacifiction" tem o dom — entre outros — de confundir ator e personagem de forma magistral

Benoît Magimel interpreta "De Roller". "Pacifiction" tem o dom — entre outros — de confundir ator e personagem de forma magistral

Um submarino francês pára na Polinésia Francesa. Em terra, na ilha, um Alto Comissário, De Roller (Benoît Magimel), tenta perceber as razões da viagem e vê-se vencido pelos rumores de que a França irá recomeçar os testes nucleares. “Pacifiction”, o mais recente filme do espanhol Albert Serra, resume-se nessas duas frases, mas vê-lo torna-se numa experiência deliciosa sobre a decadência da ideia ocidental do poder.

Foi o filme do ano para a revista Cahiers Du Cinéma. Nos prémios César ganhou Melhor Fotografia e providenciou a Benoît Magimel o feito inédito de ganhar por dois anos consecutivos a estatueta de Melhor Ator (no ano passado venceu pela interpretação em “De Son Vivant”). Magimel, ou De Roller, anda perdido em “Pacifiction”. Ator e personagem confundem-se, ambos andam à procura do seu lugar naquela situação. Enquanto isso acontece, deste lado, o espectador percebe que De Roller não tem qualquer poder e vira barata tonta a congeminar teorias da conspiração e saídas gloriosas de cenários que apenas existem na sua cabeça.

A fotografia de “Pacifiction” é magnífica. Entre um pôr do sol em permanência e luzes de discoteca que exaltam as personagens à deriva. Fica a sensação de um “Apocalypse Now” moderno, sem guerra – ou será apenas ilusão? —, onde tudo passa para o campo do invisível e da possibilidade. Em conversa com o realizador, percebe-se que esta é a sua visão do mundo, um mundo que no futuro será uma colónia dos ricos, como diz na entrevista.

Albert Serra tem feito carreira com um cinema singular, jogando o seu próprio jogo, com regras que determina de filme para filme. Por isso, enquanto espectadores, somos surpreendidos pelo cinema deste catalão nascido em 1975, que cria histórias no imaginário francês por influência, mas também por conveniência (e não há qualquer mal nisso). A filmografia está cheia de imagens únicas, desde a forma como pára o tempo em “O Canto dos Pássaros” (2008), à bela mistura entre Casanova e Drácula em “História da Minha Morte” (2013) ou até a elegia “A Morte de Luís XIV” (2016). “Pacifiction” experiencia-se como um belíssimo delírio, tanto visual como anticlímax, uma palavra cara no cinema de Serra, que aqui atinge outro nível.

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[o trailer de “Pacifiction”:]

Tenho de confessar que sou uma daquelas pessoas que tem a caixa de vinil com as bandas-sonoras dos seus filmes.
Deixe-me contar-lhe uma coisa: na semana passada estivemos em Paris a gravar com a Ingrid Caven [atriz e cantora, que entrou em muitos filmes de Rainer Werner Fassbinder, o seu marido]. Eles [Molforts] compuseram a música e ela canta.

Há pouca música, mas o som tem muita importância. No “Pacifiction” há aquele momento na discoteca, quase no final…
Sim, é hipnótico. Durante muito tempo estava contra a música, não colocava muito. Nesses discos há muita música fabricada, porque os filmes não têm muita música. A música surge no final, ou nos instantes finais da montagem. Vejo se precisa ou não. Aqui quis que a música e som fossem o mesmo, para que ajudasse à hipnose e a entrares naquela história, que é labiríntica, abstrata.

Gosta muito do anticlímax. No final de “Pacifiction” fiquei surpreendido, quis trocar as voltas ao espectador? Estive até ao fim a pensar que, afinal, não se passava nada naquela ilha.
Bom, tento sempre fazer o mais surpreendente para o espectador. É a verdade da vida. Acontecem coisas que não se esperam… A Rússia invadiu a Ucrânia… como diz o Oscar Wilde, a vida imita a arte. É a realidade do mundo, é cada vez mais escuro e opaco. No filme está muito presente a opacidade do poder, quais são os interesses que estão por detrás do poder. As diferenças entre ricos e podres são cada vez maiores. Então, para que serve o estado e quem serve? Numa colónia isso ainda é mais grave, é bom para uns e os outros que se fodam. Numa sociedade ocidental, social democrática, teoricamente não deveria ser assim.

Porque é que faz tantos filmes à volta do imaginário francês?
Dinheiro, mais fácil de financiar. Também era o meu destino natural, desde o princípio, todos os meus filmes foram em França. Gosto muito da cultura francesa, nunca estudei francês, mas leio e falo bem. Nunca vivi lá, só mesmo quando estou a trabalhar nos filmes, nas semanas de rodagem. Desde pequeno que leio os grandes escritores franceses. Mas foi algo natural… e começou a ter maiores implicações, era mais fácil de conseguir financiamento. Em Espanha não há muita tradição de financiar cinema de autor… em Portugal, nos últimos vinte anos, é mais comum dar-se dinheiro ao cinema de autor do que em Espanha. A proporção aqui é maior do que em Espanha. Contudo, gostaria que o meu próximo filme fosse em inglês.

Porquê?
Para tentar perceber se o mesmo sistema funciona com um ator inglês, com a mentalidade anglo-saxónica. É para me desafiar a mim mesmo.

Precisa de se desafiar a si mesmo?
Sim, senão já tinha morrido. Poderia continuar a trabalhar em França, com um ator francês, estaria numa zona de conforto. Poderia experimentar, claro. Mas trabalhar com ingleses é um risco maior, não lhes dar o guião para ler, eles não gostam disso. Porque é tudo narrativo, trama, argumento. Há uma frase do Walter Benjamin muito bonita que me influenciou: “A narrativa não é uma arte, é um ofício”. Não és um artista, és um artesão. Tenho isso sempre presente. Creio que vai ser desafiante trabalhar com ingleses.

Adapta-se às circunstâncias ou é intransigente?
Tenho sempre em vista criar uma obra artística. Não necessito de dinheiro, vivo modestamente, não tenho família, não tenho de fazer filmes para fazer dinheiro. Isto vem da literatura, os escritores, os poetas são pobres, os artistas de vanguarda do início do século XX eram todos pobres. Ou eram ricos de família ou pobre, ninguém ficava rico sendo escritor. Esse é o meu mundo… Quem faz um filme normal, tem de trabalhar com gente normal, técnicos, normais. É isso que faço. Tem a ver com uma visão artística e o facto de querer partilhar a minha vida com um tipo de pessoas e não outras.

O que é para si, então, o cinema hoje em dia?
Com tantas imagens, computador, televisão, telemóveis, para quê ires ao cinema ver uma imagem do código do cinema antigo? Para mim isso morreu, preciso de criar algo diferente, misterioso. A minha metodologia é essa, ir procurar algo que nem eu mesmo entendo muitas vezes, quando estamos a fazer, ou mesmo na montagem. Há muitas imagens misteriosas, que não sei mesmo o que significam. E trabalho-as de forma arbitrária, junto-as porque gosto delas, pela intensidade, mesmo quando têm ideologias diferentes. Por vezes escolho-as pela intensidade e não pelo que dizem. Obviamente que procuro uma coerência, mas essa coerência não existia quando criámos essas imagens. Faço o meu cinema de forma muito intuitiva, espontânea e rápida. Há uma frase que uma vez disse espontaneamente e de que gosto muito: “faço cinema para me enganar do mundo.”

É uma boa frase.
Sim, deveria fazer t-shirts, agora que penso nisso.

Surpreende-se com o resultado do seu método?
Sim, sempre. Primeiro, porque não tenho expectativas. E porque tenho vontade de ser surpreendido. Agora tenho de fazer um novo filme e toda a gente espera que seja tão bom ou melhor que o “Pacifiction”. Isso é difícil, sinto muita pressão. Mas por causa dessa pressão estou aberto a mais coisas.

E os atores alinham nisso?
Tenho tido sorte, encontrei sempre gente simpática. O Jean-Pierre Léaud, Helmut Berger, o Benoît Magimel, nunca trabalhei com alguém que fosse desagradável.

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Albert Serra na apresentação de "Pacifiction" no festival de Cannes do ano passado

Corbis via Getty Images

O Magimel ao longo do filme faz-me lembrar o Sean Penn.
Em que filme?

Em nenhum em particular, o Sean Penn decadente, de agora.
Sim, um tipo decadente que está no meio de alguma coisa, que não percebe nada de nada, mas ainda está lá. Como neste último filme, em que entrevista o Volodymyr Zelensky [“Superpower”]? É isso. Pode ser um pouco, uma metáfora…

E mesmo fisicamente.
Mas é mais a situação, tudo o supera, é como o tonto útil.

Também me fez lembrar o “Apocalypse Now”.
O “Apocalypse Now” tem uma personagem interessante, a do Marlon Brando, ninguém sabe se é o bem ou o mal, um libertador ou ditador. Há ambivalência. Esse é o princípio do nosso mundo. Eu acredito que o “Pacifiction” é o equivalente do “Apocalypse Now” agora, o mal já não tem rosto, já não há idealismo, não existe a ideia do bem e do mal, da gente oprimida e dos opressores, já nada está claro, todo o mundo faz parte da mesma merda. E é uma merda que se tem expandido como um vírus, de baixo, já não vês nada, não há idealismo, não distingues o bem do mal, não há imagens, está tudo confuso. No filme não há imagens épicas, tirando aquela cena do surf.

E há a ideia de colonialismo…
A minha teoria é que todo o mundo no futuro será uma colónia, uma colónia dos ricos.

Já se sente isso em Lisboa.
Sim, vês os ricos da Europa. Passeei no Príncipe Real e viam-se muitos estrangeiros a passear com carrinhos de bebés, percebia-se que viviam aqui, pela forma como andavam.

Já que falou na cena do surf, como surgiu?
Foi por acaso e, ao mesmo tempo, queria um pouco de ação no filme. Em Portugal há ondas maiores, aquelas eram de dez metros. Mas foi sorte, filmámos durante a covid. Havia um campeonato de surf, que foi cancelado por causa disso. Mas como havia ondas tão grandes, houve pessoas que escaparam ao controlo policial e foram para o mar treinar. Aquilo é uma mistura do real e do artificial controlado. Foi sorte…

Mas ficou muito bem.
Dá uma dimensão mais louca.

E sai. O filme encontra um mundo no exterior. O espectador respira por momentos.
E que é real. Não é o que existe na ficção do filme.

Já conhecia o Alexandre Melo?
Sim, há muito tempo. Havia muitos espiões no guião. Queria que ele viesse no verão, que nos viesse visitar e se viesse, poderia fazer um pequeno papel. Acabou por não ser um papel tão pequeno quanto isso. Por exemplo, a escritora no filme é mesmo uma escritora, a Cécile Guilbert. No “História da Minha Morte”, o Casanova, o Vicenç Altaió, também é um poeta. Toda esta gente mais culta… os que vêm da literatura, peço para fazer algo, e fazem, não estão nervosos, são muito precisos. Tenho confiança em pessoas próximas à literatura, à arte. No guião havia muitos espiões alemães, mas afinal acaba por haver só um, um português.

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