Se Antoine (Denis Ménochet) tivesse assinado o documento a favor das eólicas na aldeola galega onde se instalou com a mulher, Olga (Marina Fois), talvez não fosse olhado de lado e o tratassem desdenhosamente por “francês” sempre que entra na taberna; talvez Xan (Luis Zahera) não fosse tão azedamente hostil para ele, tal como o seu irmão Lorenzo (Diego Anido); talvez a ameaça de violência não surgisse sempre que Antoine se cruza com Xan e Lorenzo; e talvez eles não lhe tivessem posto um par de baterias velhas no poço de água que faz a rega da horta de tomates da sua propriedade, e arruinado a colheita.

Mas mesmo se Antoine não tivesse vetado o documento das eólicas, talvez a animosidade dos irmãos contra ele fosse igual; e talvez mesmo se ele não fosse francês e tivesse vindo de Madrid, Barcelona, Vigo, Granada ou qualquer outra cidade de Espanha, o tratassem por “madrileno” ou “catalão” com fel na voz. Na aldeola desertificada da Galiza em que se passa “As Bestas”, do espanhol Rodrigo Sorogoyen (também autor do argumento, com Isabel Peña), se há quem receba bem e aceite quem chegou de fora, há também quem ache que quem não nasceu, cresceu e sempre ali viveu, e lá tem a sua vida e os seus mortos, não é, nunca será, bem-vindo. Venha do estrangeiro ou de outra região do país.

[Veja o “trailer” de “As Bestas”:]

Sobretudo se não deixou os locais deitar a mão ao dinheiro dado pela empresa das eólicas para lá instalar as enormes turbinas, impedindo-os de deixar para trás uma aldeia moribunda e realizar sonhos antigos. Em “As Bestas”, o abismo crescente e os ressentimentos entre o mundo urbano e o do campo, bem como o aparecimento de uma economia “verde” e “sustentável” que vem perturbar e até extinguir modos de vida e costumes ancestrais, e conspurcar a paisagem com monstruosidades como as turbinas eólicas, funcionam como reagentes para preconceitos, frustrações e invejas já existentes (ver outro filme espanhol, “Alcarràs”, de Carla Simón, para um tratamento deste mesmo tema num quadro humano e num registo totalmente diferentes).

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[Veja uma entrevista com Denis Ménochet e Marina Fois:]

Trabalhando a partir de um facto real ocorrido há anos e contado no documentário “Santoalla” (2016), Rodrigo Sorogoyen foge ao preto e branco moral e de caracterização das personagens. Há uma cena na taberna em que Xan se explica a Antoine, e compreendemo-lo perfeitamente. Algumas coisas que ele diz fazem sentido, mas as suas ações tiram-lhe qualquer razão que tenha. E da parte de Antoine existe uma certa arrogância, mesmo que inconsciente, fruto da sua formação intelectual e origem social; e alguma ingenuidade, ao pensar que, a par da agricultura biológica, podia pôr-se a recuperar casas abandonadas, para atrair pessoas a um lugar onde elas nunca mais querem voltar (ver o sobrinho do pastor amigo de Antoine, que tem a vida e os seus negócios feitos na cidade).

[Veja uma entrevista com Diego Anido e Luis Zahera:]

Houve quem referisse “Cães de Palha”, de Sam Peckinpah, a propósito de “As Bestas”, mas a única semelhança que existe entre os dois filmes é a situação central da não aceitação e do ressabiamento para com pessoas vindas de fora. A fita de Peckinpah é nervosa e explosiva, a de Sorogoyan pausada e crispada. Aqui, a violência é quase sempre subjacente, e verbal e psicológica. Predominam as palavras pesadas, os silêncios ameaçadores e uma tensão de cortar à faca muito afiada, e o caminho para o inevitável confronto (em que uma prática local ligada ao adestramento de cavalos vai ser decisiva) faz-se de uma sucessão de ameaças, provocações, intimidações e humilhações.

[Veja uma cena do filme:]

As Bestas” tem dois tempos, e à falta de podermos adiantar mais alguma coisa sobre a história, sob pena de fazermos “spoilers” fatais, digamos que ao tempo dos homens se vai suceder o das mulheres: Olga e Marie, a filha do casal, e em plano mais secundário, a mãe de Xan e Lorenzo. Mas o tom cinematográfico, narrativo e emocional de ambos é quase o mesmo, tal como ao longo de todo o filme as interpretações seguem o diapasão da realização de Sorogoyan, intensas mas contidas, sugerindo em vez de exibir. O filme rapou nove prémios Goya e o César de Melhor Filme Estrangeiro, e deixou-nos cheios de vontade de ver as fitas anteriores deste realizador (também muito ativo na televisão), pois “As Bestas” é já a sua quinta longa-metragem.