Beatriz morreu. Esteve grávida de um feto sem crânio, sem cérebro, mas foi proibida de abortar. Tinha um filho de 9 meses, que nasceu prematuro, quando descobriu a nova gravidez numa ida ao hospital. Beatriz tinha lúpus, 21 anos, e foi avisada: o feto era inviável, e a sua saúde, já debilitada, poderia não aguentar outro filho no ventre. Beatriz quis abortar, mas em El Salvador, nenhuma interrupção de gravidez é legal, nem quando há risco de vida para a mãe. Os médicos diziam-se de mãos atadas — eles próprios podiam ser presos — e Beatriz escolheu o caminho da justiça. Os tribunais, por diversas vezes, decidiram contra ela. A criança teria de nascer, mesmo que os médicos avisassem que isso significaria a morte da mãe.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos interveio e protegeu Beatriz. O Estado aceitou a interrupção da gravidez. Em novembro de 2013 (a gravidez foi detetada em março), Beatriz, 21 anos, submeteu-se a um aborto — mais tarde do que seria desejável, segundo os conselhos médicos. As consequência sentiram-se na sua saúde. Beatriz voltou à justiça: exigiu uma indemnização ao Estado e que nenhuma outra mulher passasse pelo que ela passou. Em 2017, hospitalizada depois de um acidente de viação, contrai uma pneumonia na unidade de saúde e não sobrevive. Esta semana, quarta e quinta-feira, começou a audiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos que irá investigar as consequências da criminalização absoluta do aborto.
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Em El Salvador, desde 1998, o aborto é considerado crime em qualquer circunstância e pode ser punido com penas de cadeia até 50 anos para as mulheres. Para os médicos, é um máximo de 12 anos. A sentença final poderá levar à mudança na lei daquele país da América Central, onde são frequentes as notícias de mulheres presas depois de abortar, mesmo em caso de violação, risco para a saúde da mãe e até em casos de abortos espontâneos.
A audiência
A mãe de Beatriz, o médico que assistiu a grávida e um representante do Estado foram ouvidos pelos sete magistrados, de diferentes nacionalidades, que compõe o órgão judicial independente, sediado na Costa Rica, e que tem por mandato aplicar e interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Terminados os dois dias de audiências, ambas as partes deverão apresentar alegações escritas no prazo máximo de 30 dias. Até ao final do ano, o tribunal emite a sua decisão.
“Quando a minha filha foi diagnosticada com lúpus e com uma gravidez, os médicos disseram-lhe que não poderia continuar com a gravidez, porque ambas as vidas estavam em perigo. Havia apenas uma maneira de ela se salvar e eles não podiam pô-la em prática, não podiam permitir um aborto”, disse a mãe de Beatriz em tribunal, citada pelo El Pais.
Já o médico que acompanhou as duas gravidezes de Beatriz, Guillermo Ortiz, foi claro: “Uma vez que não havia possibilidade de reverter a anomalia congénita do feto, restava-nos proteger a vida da mulher.”
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Rafael Barahona, que falou em defesa do Estado, pôs em causa as recomendações da Comissão Médica, formada pelos 15 profissionais que recomendaram o aborto. “Esses cargos costumam ser meramente administrativos, não têm conhecimento médico. Não são eles que atendem os pacientes”, disse, rejeitando a ideia de que a vida de Beatriz esteve em risco.
“Naquela segunda gravidez, ela nunca correu risco. Planearam uma cesariana quando poderiam ter esperado um pouco mais pelo parto. Isso teria sido menos invasivo”, disse Rafael Barahona. “A maioria das mulheres grávidas com lúpus tende a melhorar após a gravidez.”