“Dor fantasma”, de Rafael Gallo, é um romance nascido de uma depressão, mas que “tirou a desforra” ao ganhar o Prémio José Saramago, o “panteão pessoal” do autor, que o salvou quando se estava a afundar.

O livro conta a história de um pianista virtuoso, que se dedica inteiramente a buscar a perfeição na sua arte, mas também nos outros, e que se prepara para surpreender o mundo com a interpretação daquela que é considerada a peça intocável de Liszt, o “Rondeau Fantastique”, numa ‘tournée’ pela Europa, que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor.

Mas a vida tem outros planos para ele e um acidente deixa-o amputado de uma mão, comprometendo a sua carreira musical e a perfeição que almeja.

A ideia de criar a personagem de um pianista amputado partiu da sua própria experiência de vida, num período em que se sentiu amputado na sua criatividade e confrontado com uma perda de identidade, contou o autor em entrevista à agência Lusa.

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Formado em música, o brasileiro Rafael Gallo deixou a carreira musical para se encontrar na escrita, que lhe deu “realização pessoal”, mas as dificuldades financeiras obrigaram-no a arranjar um emprego “para pagar as contas” e a escrever no tempo livre.

Naquela época, eu prestei um concurso, me tornei escrevente do Tribunal de Justiça, e aí o estranhamento foi enorme, foi um choque muito grande para mim, porque eu vinha trabalhando com arte, com música, era o que eu gostava, e de repente eu estava ali fechado numa repartição. É um trabalho burocrático sem graça”.

Ao mesmo tempo, reconhece que nem sequer era bom naquilo que fazia e foi toda uma “mudança estranha e difícil de lidar”. Foi em 2016, quando Rafael Gallo entrou no novo trabalho, que teve o primeiro episódio de depressão e que começou a escrever o livro.

Quis colocar o assunto na história e achou interessante que o seu personagem, Rômulo Castelo, fosse assim: uma pessoa que perante a amputação fica deprimida, mas não lida com isso.

Por isso, diz que o livro nasceu numa depressão, que durou meses e teve acompanhamento médico, mas no final apercebeu-se de que já tinha uma “inclinação fisiológica”, pois sempre foi uma pessoa melancólica, introspetiva e com “uma certa dificuldade para algumas coisas”.

Escreveu até ao final de 2019, quando terminou a primeira versão, e em 2020 “veio o grande clássico da nossa época”: a pandemia, trazendo com ela incógnitas futuras, a morte de pessoas e um “Presidente [Jair Bolsonaro] a debochar de tudo isso”.

Então, entre 2020 e 2021 teve outro episódio depressivo e quase desistiu de escrever, mas a abertura do edital do concurso do Prémio José Saramago fê-lo repensar. Ponderou escrever um novo romance “rapidíssimo, em meses”, mas percebeu que seria impossível.

Falei: bom, não vai dar certo, a única coisa que tenho é a ‘Dor fantasma’ e esse prémio é o meu sonho. Ou tento com o ‘Dor fantasma’, ou não tento. Aí, peguei o ‘Dor fantasma’ para refazer e refiz, porque esse processo [da depressão] também me mudou muito. Sou outro Rafael, vivi uma outra vida”.

Nesse período corrido, de refazer a história, de cumprir prazos, de submetê-la ao prémio e de ainda a entregar a um editor, sentiu-se movido pela adrenalina e foi saindo do segundo episódio de depressão.

O primeiro novo choque foi a recusa do editor, que aceitou um outro livro que Rafael Gallo lhe entregou, de contos, mas recusou o romance.

Depois que eu mandei o livro, começa a baixar a adrenalina e eu falei: Rafael por que é que você foi mandar esse livro, ninguém gosta desse livro, as pessoas já leram e não gostaram, o editor já leu e não quis. Prémio Saramago. As pessoas aqui não estão gostando, olha quem são os jurados, o prémio que eu sonhava, queimei minha ultima chance”, contou.

Nessa altura começou a “sentir o hálito do fantasma” da depressão novamente, os primeiros sinais a instalarem-se, e “aí veio a notícia” do prémio.

Para Rafael Gallo, a escrita do livro foi uma “vingança”, foi um afirmar: “isso aqui não vai me vencer de todo, eu ainda posso escrever sobre, ainda posso vencer de alguma maneira”, recordou. Venceu essa batalha e, como uma “desforra”, venceu o Prémio José Saramago, que já era um sonho antigo.

Escritor brasileiro Rafael Gallo vence Prémio Literário José Saramago 2022

Eu sou um fã do prémio, eu acompanho, poderia responder um jogo de trivial sobre o prémio. Eu falo todos os vencedores, eu li quase todos, eu falo até na ordem. Acompanho, sei o que acontece, sabia tudo, adoro alguns dos livros que ganharam, são os meus preferidos, autores. É o meu panteão pessoal, então para mim, no meu panteão pessoal eu entro também, é um sonho. Ainda mais nesse momento que eu estava tão para baixo foi uma salvação, uma salvação desse Rafael que estava-se perdendo, estava-se afundando, estava-se apagando”.

“O prémio deu-me essa restauração, ele me restaurou“, acrescentou.

Rafael Gallo confessa que adoraria ver o seu romance adaptado ao cinema, até porque durante algum tempo trabalhou com música para audiovisual e cinema, uma das suas paixões.

Não faço pensando nisso, não vou escrever algo, sequer uma cena, sequer um diálogo, a pensar que se um dia fizer um filme, isto vai ficar bom. Eu estou escrevendo um livro, tem que ser um livro. Mas sim, claro, se alguém falar ‘faça um filme’, adoraria”.

Formado em música pela Universidade Estadual de São Paulo, com mestrado em meios e processos audiovisuais, e com estudos na área de música para cinema, Rafael Gallo toca ainda violão e piano, embora hoje seja um ‘hobby’.

Contudo, ao contrário de Rômulo Castelo, de “Dor fantasma”, cujo repertório é todo clássico, Rafael Gallo ouve mais MPB, Jazz e Rock. “Dor fantasma” chegou esta semana às livrarias, editado pela Porto Editora.

“Dor fantasma” aborda a cultura de cancelamento que conduz à opressão e à autocensura

O escritor brasileiro Rafael Gallo, autor de “Dor fantasma”, considera que a cultura de cancelamento está a conduzir as pessoas à opressão e autocensura prévia, alertando para o risco de se criar “um monstro para combater outro monstro”.

Este é um tema abordado, de forma subliminar, em “Dor fantasma”, romance de Rafael Gallo vencedor do Prémio José Saramago 2022, que chegou esta semana às livrarias, publicado pela Porto Editora.

A obra conta a história de Rômulo Castelo, um pianista virtuoso, que se dedica inteiramente a buscar a perfeição na sua arte e que, todas as manhãs, ao acordar, se fecha na sua sala de estudos e ensaia aquela que é considerada a peça intocável de Liszt, o “Rondeau Fantastique”.

Em breve, Rômulo irá oferecê-la ao mundo, numa ‘tournée’ pela Europa que o sagrará como o maior intérprete daquele compositor, mas um acidente amputa-lhe a mão, deixando-o incapaz, conduzindo-o a um processo de quase loucura, em que, na sua obsessão pela perfeição, se revela cada vez mais intolerante e violento para com os outros, incluindo os seus alunos de música e o próprio filho.

Para ele existe o jeito certo de tocar, o jeito certo de viver, você tem de ser assim e qualquer coisa fora disso está errada e tem que ser eliminada, o que é um padrão dos extremistas em geral: Hitler, Bolsonaro, Macbeth. Esse perfil de tragédia me interessava”, disse o escritor em entrevista à Lusa, durante uma passagem por Lisboa para o lançamento daquele que é o seu terceiro livro.

Revelando-se “um tirano com o que pode“, o personagem acaba por protagonizar uma cena da violência que é captada e difundida na Internet, gerando um movimento popular que o agride na rua, destrói a sua imagem, a sua carreira e ainda leva a que a sua mulher, que nada tinha a ver com o sucedido, seja despedida do emprego.

O autor quis explorar esta ideia do poder das redes sociais e das pessoas, através do seu uso, que tem efeitos positivos, mas que pode tornar-se perigoso e excessivo, mesmo que a intenção seja boa e a pessoa deva ser punida.

A premissa é absolutamente legítima, mas ela começa a se tornar monstruosa depois, e eu acho que a cultura do cancelamento tem esse traço. Eu acho que certos debates são necessários, acho ótimo que o público tenha voz”.

Um dos bons exemplos apontados foi o movimento ‘Me Too’, que considerou “fundamental” e “uma das grandes vitórias da sociedade“.

Mas ele também é perigoso, quando se torna essa coisa como as bruxas de Salem: agora posso pegar qualquer pessoa e não vejo se há processo legítimo de provar e ver se realmente aconteceu. Não, se alguém falou, a gente já vai absolutamente esmagar essa pessoa, acabar com tudo dela e sem chance de defesa nenhuma. Isso também é perigoso, isso é muito perigoso, porque isso também é um extremismo, também é uma opressão, e que está criando outra coisa, outro fenómeno, que é uma autocensura prévia”.

Na opinião de Rafael Gallo, o melindre pode levar a que se deixe de dizer coisas importantes por medo de usar expressões erradas, como aconteceu com o próprio, quando, certa vez, foi atacado na Internet por ter usado uma “expressão errada”, ao defender uma mulher.

Seres humanos. Parece uma vontade de sempre ter algum poder sobre o outro. A cultura de cancelamento às vezes vira um poder também e é preciso começar a tomar cuidado, senão a gente vira um monstro que quer combater outro monstro”, afirmou, admitindo que possa haver alguma indignação com linguagem misógina e de ataque à deficiência usada no livro.

No entanto, destaca que era fundamental manter esse padrão, porque quem o usa é uma “personagem detestável” em relação à qual “não dá para fazer assepsia”, uma pessoa que nunca se referirá a outro como pessoa portadora de necessidades especiais.

Senão daqui a pouco a gente começa a falar assim, tem um personagem racista mas só usa os termos politicamente corretos. É preciso colocar, senão causa o efeito contrário, começa a limpar o racista, a limpar o xenófobo, ele vira um xenófobo polido. Ele não tem de ser polido, tem de ser mostrado”, afirmou.

A amputação do personagem principal exigiu do autor muito trabalho de pesquisa para compreender o que sente e por que passa uma pessoa que sofre um acidente desses, e uma das primeiras coisas que fez foi entrevistar pessoas que foram amputadas e profissionais que trabalham com elas.

Rafael Gallo conta que a sua principal curiosidade era entender “essa questão da sensação do membro fantasma”, que acaba por dar título ao livro.

Em “Dor fantasma”, Rafael Gallo aborda também a paternidade, através da relação de Rômulo com o seu pai e com o seu filho, depois de no romance anterior, “Rebentar”, se ter centrado na maternidade.

O pai de Rômulo, também músico, impõe uma educação conservadora e feroz ao filho, que este segue ao longo da vida e quer replicar no seu filho, em quem deposita as maiores expectativas.

Querendo que o filho seja “uma extensão dele próprio”, batiza-o com o nome Franz, em homenagem a Franz Liszt, mas quando o filho quebra a expectativa, fica completamente apagado e os laços afetivos quebram-se definitivamente.

Os temas das relações familiares são muito fortes e isso vai moldar a nossa relação com o mundo”, afirmou, considerando que os homens têm um tipo de educação, em que a parte afetiva não é falada, e é centrada em trabalhar, produzir, destacar-se, tudo ligado ao capitalismo e ao produzir capital.

Essa foi a sua educação, também muito regida pela Igreja, e Rafael Gallo, que se rebelou contra esse ‘status quo’, como afirmou, sentiu que “era a hora de lidar com esses temas” e com esta “cultura machista e patriarcal”.

Texto de Ana Leiria, da agência Lusa