[ALERTA SPOILER: este artigo contém detalhes sobre o terceiro episódio da quarta temporada de “Succession”. Se não os quer conhecer, não leia]
Em ficção, morre-se sempre em câmara lenta. Temos direito a grande plano e fade out – para já não falar na banda sonora elegíaca, perfeita. Cai-se de joelhos e há tempo para o arrependimento, a remissão, formular as palavras que tudo dizem, tudo resumem, tudo fecham. Despedimo-nos dos que nos amam e dos que nos odeiam. Partimos como se tudo isto, afinal, fizesse mesmo sentido.
É uma das grandes forças motrizes de toda a criação artística: tentar resolver esse momento absurdo da morte. A morte real que vem de um momento para o outro, que não chega a ser nada; pelo contrário, é antes o súbito deixar de ser. Final a corte, cru, nunca em fade. Fita que se rompe, rasga, termina. Arrastada e trôpega, na ânsia de haver sempre um pouco mais de tempo para dizer o que falta, temendo supersticiosamente antecipar a morte por tê-la aceitado.
A menos que estejamos numa série como “Succession”, em que a morte de uma personagem é coisa bem mais parecida com a vida real. Sem grandiloquências, sem aviso, sem direito a monólogo final, a um plano sequer. Os detratores vão continuar a detratar: então, mata-se assim uma personagem principal? Nem a mostram a morrer? Nem a mostram depois de morta? Uma pessoa nem percebe bem se ela morreu mesmo ou é só um truque! E ninguém chora? E ninguém avisa X, Y ou Z? E o outro casa na mesma?
O final de “Succession”, episódio 2: o amor não é um negócio de família
O episódio três da última temporada da série criada por Jesse Armstrong tem por título pueril “O Casamento de Connor” e é sobre uma coisa totalmente diferente do casamento de Connor. Recorda-se do que dizíamos a semana passada? A estrutura básica da narrativa: primeiro, anunciamos o que vai acontecer; depois, alimentamos a expectativa para o que vai acontecer; e, por fim, algo completamente diferente acontece.
Estas crónicas têm o compromisso assumido de conterem spoilers – daí serem publicadas apenas no final do dia, para que os mais indefectíveis seguidores de “Succession” tenham tempo de ver o episódio estreado de manhã. Mas, desta vez, podemos falar do facto sem o revelarem inteiramente. Fiquemos pelo meio spoiler. Morre uma personagem central neste episódio, mas qual? Não é decisivo para aquilo de que “Succession” quer falar: da desumanização destas personagens, deste universo, desta cultura.
O final de “Succession”, episódio 1: até estes monstros precisam de amigos
Morre uma personagem central e nunca, como dantes, se torna evidente que as personagens lutam por sentir (e só algumas conseguem, com esforço, garimpar das suas peles grossas umas poeira de humanidade). Não estão equipadas para falarem de emoções. Não sabem sequer se a pessoa diante deles ainda está viva ou morta porque não sabem a diferença. Não percebem se o coração parou, não verificam se ainda respira, não sabem como reanimá-la. Falam com ela sem saberem se ainda as ouve porque o que importa é descarregarem as suas consciências, o que importa são elas, o que têm a dizer, não tanto que as ouçam.
Foram formatadas com a linguagem “corporativa” dos “comunicados”, preocupa-lhes o que dizer aos “mercados”. Não sabem chorar, riem sem jeito diante do absurdo, dizem que “acham” que estão tristes – e não estão a mentir. “Teoricamente, diria que estou triste”, diz um. “X morreu e eu sinto-me mais velho”, desabafa outro. “Tudo o que fizermos agora será para sempre o que fizemos no dia em X morreu”, avisa um terceiro, para que ponderem cada palavra e passo seguintes.
São robôs a descobrirem que, afinal, foram programados também com emoções, Pinóquios transformados em meninos reais no momento em que descobrem a impotência. A impotência dos todo-poderosos a quem, afinal, algo escapa. Mesmo chamando os melhores médicos, mesmo batendo o pé e dizendo que não aceitam.
E nós, que somos uns humanos sem cura, começamos a gostar deles.