A partir de certa altura, denunciar já não era opção. Havia demasiado em jogo. A investigação em sociologia, aqui em Portugal ou no Brasil, seu país natal, orbitava em torno de Boaventura de Sousa Santos. Contar o que se passou naquela noite em casa dele seria condenar a sua própria carreira ao fracasso e arruinar também a do seu orientador de doutoramento a partir do Brasil, que manteria “relações políticas” com o sociólogo.

A história desta investigadora e política brasileira é a que surge no livro que aponta Boaventura de Sousa Santos por, alegadamente, ter assediado, sexual e moralmente, estudantes do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Terá sido a ela que o sociólogo português acariciou o joelho prometendo que “todas as portas” do centro se abririam para ela caso aprofundassem a sua “relação pessoal”.

O encontro não aconteceu nas instalações do Centro de Estudos Sociais. Depois de ter sabido que Boaventura de Sousa Santos tinha escolhido orientar a sua investigação — um motivo de orgulho na academia —, a estudante solicitou uma reunião de trabalho por email. O professor acedeu, mas pediu que o encontro acontecesse na sua casa. Quando ela chegou, foi recebida com bebidas alcoólicas. Recusou-as. Depois, perante as alegadas investidas de Boaventura, recusou também a sua proposta:  “Acho que confundiu as coisas”, terá dito. Recolheu os seus pertences e abandonou a casa.

Aquele homem não era o mesmo que a inspirou a emigrar para estudar em Coimbra. A brasileira tinha-se cruzado com o nome de Boaventura de Sousa Santos pela primeira vez através de um livro, da coleção “Ecologia de Saberes”, que o agora ex-companheiro lhe mostrou.

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“Li aquilo e fiquei admirada e isso fez-me tomar a decisão de fazer o intercâmbio estudantil na altura da graduação para Portugal”, relata ao Observador: “Em Coimbra conheci o Boaventura e fui-me aproximando do Centro de Estudos Sociais, através de experiências da Universidade Popular de Movimentos Sociais. Fez-me querer fazer um doutoramento na instituição”.

A Universidade Popular de Movimentos Sociais é um “espaço de encontro e intercâmbio dos movimentos sociais” que “surge para articular os conhecimentos diversos, fortalecendo novas formas de resistência e contribuindo para a reinvenção da emancipação social, entendida aqui como a base em que projetos plurais transformam relações de poder em relações de autoridade partilhada”.

Na página pessoal na internet, Boaventura de Sousa Santos descreve a universidade como uma iniciativa para “proporcionar a auto-educação dos ativistas e dirigentes dos movimentos sociais, bem como dos cientistas sociais, dos investigadores e artistas empenhados na transformação social progressista”. A proposta da criação da Universidade Popular de Movimentos Sociais partiu precisamente de Boaventura, que apresentou a ideia no Fórum Social Mundial em 2003.

O assédio sexual que diz ter sofrido naquele dia transformou-se em assédio moral no dia seguinte, durante uma reunião entre a alegada vítima, o seu ex-companheiro, Boaventura de Sousa Santos e a professora a que as autoras do livro (e a própria denunciante) chamam de “Viligante” — desta vez, no escritório no Centro de Estudos Sociais. “Desqualificou-nos academicamente a ponto de o meu companheiro começar a chorar”, recorda a investigadora em entrevista o Observador.

Era o ponto final para ela. Mas as portas da academia conimbricense não se abriram para as denúncias formais que a investigadora estava disponível para fazer em 2014. Procurou o coordenador do curso, que lhe terá oferecido todo o apoio para dar continuidade à carreira académica — mas “nada sobre a formalização de uma queixa, nada sobre medidas formais”, recorda. “Infelizmente, o Boaventura é brilhante, mas tem destas coisas“, ter-lhe-á dito o coordenador.

Depois, procurou professoras feministas da universidade, na esperança que a encaminhassem para as estruturas adequadas para formalizar uma denúncia, mas encontrou novamente um beco sem saída: “Ele é assim, sabemos de outros casos, mas não sabemos o que fazer”, ter-lhe-ão dito. “A vida académica delas estava atrelada e condicionada por aquele sistema de poder”, interpreta agora.

O pedido de desculpas depois dos grafitis nos muros: “Todas Sabemos”

Cinco anos depois, já a investigadora trabalhava na sua terra natal no Brasil, terá recebido um email de Boaventura de Sousa Santos. Estaria num evento na Bahia e pretendia aproveitar para apanhar um voo de ligação para Belo Horizonte e encontrar-se com ela para uma reunião. A agora política brasileira acedeu, mas deu por si num encontro à margem do âmbito social: Boaventura de Sousa Santos quereria pedir desculpas.

Tudo isto aconteceu numa altura em que surgiram em Coimbra, inscritos em muros brancos, grafitis com o nome do professor e a mensagem “Todas Sabemos”. “Tem alguma coisa a ver com estes factos?”, terá perguntado Boaventura de Sousa Santos quando se encontrou com a investigadora, enquanto lhe mostrava fotografias das inscrições. A brasileira disse que não. Ao Observador, continua a assegurar que não esteve por detrás daqueles grafitis e que só soube deles quando o sociólogo português lhe mostrou as fotografias naquele novo encontro.

Foi nesse momento que Boaventura de Sousa Santos, dizendo-se vítima da “cultura de cancelamento”, ter-lhe-á pedido desculpas. Pela segunda vez. Como na primeira, que aconteceu quando a investigadora abandonou Portugal e regressou ao Brasil para concluir no país de origem a tese de doutoramento, o sociólogo terá argumentado que nutria sentimentos pela aluna em 2014 e que se deixou levar por eles. A investigadora voltou a recusar o pedido de desculpas. “Já não faz sentido”, terá respondido: “Aquilo de que tinha precisado anos antes era de uma orientação para fazer uma denúncia formal”.

Naquele tempo, a alegada vítima sentia-se “refém “do Centro de Estudos Sociais, presa a Coimbra por uma bolsa de doutoramento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) — uma fundação tutelada pelo Ministério da Educação do Brasil. O financiamento cobria todos os seus custos e a investigadora temia que teria de devolver todo o dinheiro que já tinha recebido e gasto até ali — e que envolvia o pagamento de salários, bilhetes de avião e seguros, por exemplo.

Ao fim de um ano, a investigadora conseguiu negociar com o CAPES a transferência para uma instituição no Brasil e libertou-se das “amarras”. Não teve de cobrir quaisquer dívidas porque passou a ser co-tutelada pela Universidade de Coimbra e uma faculdade brasileira, passando a ter outra coordenação e podendo trabalhar a partir do país natal. A bolsa foi revogada, mas o doutoramento foi concluído com sucesso (e sem dívidas) E, com a ajuda do coordenador brasileiro, a investigadora conseguiu vingar no mundo da investigação em sociologia.