Em inglês chama-se “mooning“, no Brasil “bundalelê” ou “bundaço” e em Portugal não foi (ainda?) cunhado qualquer termo para o descrever — mas esta quarta-feira voltou a ser usado o já clássico ato de protesto que consiste em baixar calças (ou levantar saias) e exibir o rabo nu, com ou sem mensagens escritas a acompanhar.

“Celebrar o quê? Não há planeta B”. Ativistas climáticos interrompem aniversário do PS e baixam as calças

Aconteceu na cerimónia de celebração dos 50 anos do Partido Socialista, na sede do Largo do Rato, e durou breves instantes, os suficientes para a cristalizar em fotografia e fazer passar a mensagem: “Ocupa!”, podia ler-se, da esquerda para a direita, nas seis nádegas dispostas em fila, “OC-UP-A!”. “Celebrar o quê? Não há planeta B!”, tinham gritado os três manifestantes imediatamente antes de porem a nu o protesto.

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“Durante o discurso de abertura esta manhã, três estudantes do movimento ‘Fim ao Fóssil’ acusaram o PS de ‘não fazer um cu’ pela ação climática”, diz o comunicado entretanto enviado às redações pela assessoria de imprensa do movimento Greve Climática Estudantil Lisboa, para contextualizar o protesto.

“Os estudantes fazem parte do movimento que, a partir de 26 de Abril, vai ocupar mais de uma dezena de escolas em Lisboa, em Coimbra, em Faro e no Porto, reivindicando ‘o fim aos combustíveis fósseis até 2030’ e ‘100% eletricidade renovável e acessível até 2025 para todas as famílias'”, continua o texto. “Prometem ocupar até que 1.500 pessoas se comprometam a participar numa ação de desobediência civil em massa organizada pela plataforma ‘Parar o Gás’ no terminal de gás natural liquefeito de Sines, a 13 de Maio.”

https://twitter.com/gcelisboa/status/1648677498484318211

No Largo do Rato, testemunhou a jornalista do Observador no local, o protesto não escandalizou ninguém. “Este momento de liberdade de expressão que tivemos muito se deve ao PS!”, gracejou Raul Moreira, diretor de Filatelia dos CTT, responsáveis pelo selo evocativo dos 50 anos do PS, desanuviando assim o ambiente na sala e fazendo rir muitos dos presentes.

Há exatamente 30 anos e três dias, quando outros quatro estudantes fizeram o mesmo, mas no Centro Cultural de Belém e na presença de Couto dos Santos, então ministro da Educação do governo Cavaco Silva, as reações foram bem diferentes. A mensagem inscrita nos rabos em questão também: “Não Pago”, “NÃ-O -PA-GO” — o quinto elemento, que devia ter exibido dois pontos de exclamação, ter-se-á amedrontado à última hora, contariam em 2011, à RTP,  Sérgio Vitorino, Luís Branco e João Carlos Louçã, três dos manifestantes (o quarto, Jorge Barata, recusou participar na reportagem).

“De repente há gente na sala toda à procura para nos bater”, recordou Sérgio Vitorino, conhecido ativista LGBTQI+, co-fundador da Marcha do Orgulho de Lisboa e do coletivo Panteras Rosa, enquanto revia as imagens captadas na altura em que, em protesto contra o pagamento de propinas, fez parte do primeiro “bundalelê” à portuguesa de que há registo.

Para além de ser visível a confusão que se gerou de imediato, com a polícia a rodear rapidamente o ministro, são audíveis os gritos escandalizados dos presentes, que oscilam entre impropérios irreproduzíveis e gritos de “palhaços” ou “marionetes”.

Garantiram os próprios, 18 anos mais tarde, entre gargalhadas e comentários às cabeleiras da juventude, todos acabaram por conseguir escapar incólumes da sala. Já da vida nem tanto: o antropólogo João Carlos Louçã, então militante do Bloco de Esquerda, estava desempregado. Luís Branco, também militante do BE e licenciado em comunicação social, também. E Sérgio Vitorino, seu colega de turma, idem. Em 2011, reviam-se os três na definição de “geração à rasca”, moldada pela troika a partir do original a que tinham ajudado a dar forma.

Uma década depois, o que mudou para a “geração à rasca”?

Os de Sérgio, João Carlos e Luís podem até ter sido os primeiros, mas o rabo que deu o mote para a crónica com que Vicente Jorge Silva, co-fundador e então diretor do Público, apelidou toda uma geração foi outro. E, no caso, nem tinha palavras inscritas.

Foi a 6 de maio de 1994, um dia depois de a escadaria da Assembleia da República ser palco de uma batalha entre polícias e estudantes do ensino secundário, em protesto contra a obrigatoriedade das famigeradas Provas Gerais de Acesso, que nasceu a “geração rasca”.

“A crise da política e o vazio de ideais e valores terão sido substituídos pela escatologia e pela obscenidade? As manifestações de protesto converteram-se hoje em expressões de má-criação, estupidez e alarvidade que fazem corar de vergonha os espíritos mais tolerantes e liberais? O hooliganismo futebolístico transferiu-se dos estádios para as escolas e para a rua? A banalização da vulgaridade estimulada pela televisão e por alguns ídolos do momento — como o inenarrável Quim Barreiros — contaminou a própria linguagem da contestação? Estamos a assistir ao nascimento de uma geração rasca?”, questionava Vicente Jorge Silva.

Na primeira página do jornal, em manchete, ao lado do título, — “Liceais hard-core” —, destacava-se o rabo contestatário por entre a multidão que, uma vez mais, reclamava contra o detentor da pasta quente da Educação, entretanto entregue à também social-democrata Manuela Ferreira Leite. No interior, uma outra imagem, mais gráfica ainda, se bem que a preto e branco, punha a nu o resto (que é como quem diz, exibia o jovem contestatário de frente).

“Afinal, que querem os estudantes? Pôr em causa o que lhes parece injusto ou servir-se de uma causa legítima para mostrarem que, afinal, apenas merecem o tradicional par de tabefes com que antigamente pais e professores castigavam a má-criação de filhos e estudantes? Ou será ainda que pretendem fazer com que a polícia — normalmente apontada como o mau da fita — perca justificadamente a paciência com as provocações e arruaças dos bandos juvenis?”, continuava a questionar o então diretor do Público, na altura certamente sem saber que ia cunhar assim toda uma geração e entrar para a História.

Da “geração rasca” à “geração à rasca
”

Quando, em 2014, escreveu “De uma geração rasca a uma geração à rasca: jovens em contexto de crise”, José Machado Pais recuperou obviamente o “corrosivo editorial”. Mas deteve-se bastante mais na questão da exibição de rabos (ou de outras partes privadas) como manifestação de desagrado ou forma de protesto — que, como já vimos, em algumas partes do mundo até têm nomes específicos.

O investigador e coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa nem por uma vez empregou os termos “bundalelê” 0u “bundaço”. Mas uma vez que o artigo foi incluído num livro publicado pela Universidade de Niterói, trocou várias vezes “rabo” por “bunda”, para melhor se fazer entender.

Os traseiros exibidos são provocantes na medida em que provocam reações negativas do lado de quem os observa. Em si mesmos são inofensivos. O mesmo se pode dizer em relação ao gesto de um jovem que exibiu o pénis, equivalência simbólica com os punhos erguidos das manifestações. Os gestos não são traduções fracas do pensamento. São metáforas do corpo. Podem ser formas de confronto com o poder institucional. A provocação explora a ironia, assentando esta numa conexão de dissimilaridades de pontos de vista”, teorizou. “A exibição dos traseiros sugere que a resistência estudantil às provas globais ganhou formas de transgressão, transformou-se numa insurreição corpórea por um desmantelamento da linguagem do corpo, sedimentada pelo ‘convencional’, ou seja, a ostentação da bunda correspondeu a um uso instrumental do corpo como arma de luta. O jovem manifestante substituiu-se por um significante, metonomizou-se: o traseiro surgiu como metáfora do protesto.”

Apesar de depender sempre do contexto em que surge, exibir o rabo nu é efetivamente sinónimo de manifestação de desagrado — e isso remontará aos tempos da Roma Antiga; Flávio Josefo, autor de “A Guerra dos Judeus”, nascido no ano 37 d.C., terá sido o primeiro a descrever um protesto semelhante.

Já as centenas de pessoas que a 12 de fevereiro de 2017 se juntaram em Chicago, em frente à Trump Tower, para um “mooning em massa” de protesto contra o então recém-empossado Presidente, terão feito parte do maior movimento do género alguma fez feito.

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Em fevereiro de 2017 foi organizado um “mooning” em massa à frente da Trump Tower de Chicago, em protesto contra o então Presidente dos EUA