É o primeiro livro de An Yu publicado em Portugal. Nascida em Pequim, a autora lá viveu até seguir para estudar e trabalhar em Londres, Nova Iorque e Paris. Porco Assado (no original, Braised Pork, 2020) é o seu primeiro romance, a que se seguiu Ghost Music (2022). Neste momento, a autora, que vive em Hong Kong, escreve para publicações como The Sunday Times, The Wall Street Journal ou Los Angeles Review.
No centro da narrativa, temos Jia Jia. Logo à cabeça do livro, eis o seu marido morto na banheira, e ei-la a encontrá-lo. Minutos antes, tinham tomado o pequeno-almoço juntos, e ele preparava as malas para mais uma viagem. Termina assim um casamento opressivo, sem amor, e inicia-se uma busca. Para Jia Jia, será difícil esquecer o desenho a lápis encontrado ao lado do cadáver. A imagem perturba, mas a vida continua. Livre do casamento, começa uma jornada entre a auto-descoberta e a descoberta do mundo. Um pouco mais adiante na narrativa, lá está ela nos cumes do Tibete, em lugares cuja existência há pouco desconhecia.
Jia Jia, sendo o foco do enredo, é ainda o elemento que possibilita, na narrativa, a inclusão de outros, mais abrangentes do ponto de vista geográfico e cultural: é que, para além das paisagens do Tibete, ainda há a atmosfera da China urbana, a procura da novidade, o desconcerto de uma vida ainda por resolver. O casamento aparecerá quase como bloqueio temporário à vida, e a morte do marido como desbloqueio necessário a que a vida se catapulte para a procura e para respostas.
Livro: “Porco assado”
Autora: An Yu
Editora: Quetzal
Tradução: Maria Dulce Guimarães da Costa
Páginas: 216
O tom vai sendo sempre levemente onírico e a prosa é sempre seca, funcional. Não parece haver gordura a ser retirada, os parágrafos não se demoram, não há exuberância escusada. A cada momento de leitura, há uma sensação de depuração linguística, usada para dizer o essencial. A prosa, feita barro esculpido, veicula um sentido que vai saltitando entre o realismo e o surrealismo, e a escrita cirúrgica permite o vínculo directo a Jia Jia. O casamento, ainda que infeliz, funcionava para a protagonista como uma forma de estar no mundo: o marido, rico, garantia-lhe a subsistência ao mesmo tempo que lhe retirava a hipótese de auto-subsistência, impedindo-a de vender a sua arte. À sua morte, não só não lhe deixou a fortuna, que ficou para a sua família de origem, como a deixou com pouco dinheiro na conta e uma casa difícil de vender.
Quase sem dinheiro e sem contacto com o mundo da arte, é a vida a sós, na idade adulta, no pós-casamento, que se torna na descoberta. Depois disto, para onde ir? A resposta está no bar ao lado, onde há um copo disto ou daquilo, uma ligeira embriaguez de vez em quando, e Leo, que surge na narrativa como a possibilidade de uma vida simples, de um amor sem dramas. A relação entre os dois vai surgindo de forma tão seca que é difícil encontrar-lhe a emoção, até porque o tom onírico quase permanente vai roubando o leitor para esse estado encantatório.
Paralelamente a uma nova hipótese de vida, vai surgindo a imagem que estava junto ao cadáver. Vem sempre num mundo aquoso e é pontapé de partida para o Tibete, em busca do significado dessas visões. A partir daí, são criadas incursões reflexivas sobre a infância e a família. Este será o ponto mais frágil do romance – a inclusão de visões. O elemento surrealista faz com que o romance perca em casos em que não é o ponto principal, em casos em que não obrigatório à continuação da narrativa, ou até que não a constitua. Nestes casos, em que funciona para meros apontamentos que impulsionam, que pontilham, desvia a atenção do leitor, tira-o da cena concreta das ruas, faz com que jogue um jogo de subjectividade que tem mais que ver com a subjectividade como crença absoluta do que com a ambiguidade humana que a literatura gosta de esventrar. Para mais, a questão do mundo aquoso que daqui advém parece meramente simbólica, já que nunca fica claro qual é a importância, ainda que subjectiva, da sua referência para Jia Jia.
Esta vai sendo uma estratégia recorrente da autora, que aqui e ali vai tendo traços murakamianos. Com frequência, An Yu lança um isco, mas depois perde-se a ponta. Ao desfiar-se, o fio cede, e eis o leitor perante um e outro beco sem saída. Primeiro, cogita-se um sentido; depois, enfrenta-se a sua ausência. Nisto, a leitura pode ser frustrante, embora funcione para leitores a quem o fluxo inconsciente não entorpeça a experiência de leitura. O tom vago faz com que a profundidade ceda forçosamente e a narrativa deambula com a protagonista, que muda de ideias, que saltita entre o concreto e o onírico, que nunca percebe bem para onde é que vai. Com esta estratégia, sobram a contemplação e a melancolia. Com isto, a própria narrativa vai parecendo acidental, num movimento em que um fio puxa o outro e em que a vida sabe a casualidade.
Assim, o tom inicial de thriller vai, com a surpresa do leitor, transformar-se noutra coisa qualquer. O mistério do marido morto de repente na banheira foge da procura da causa e, em vez da junção de elementos objectivos, passa a reinar a subjectividade permanente – até o desenho lá encontrado tem esse cariz. Também essa opção – a desse desenvolvimento – traz perplexidade ao leitor. No fim, sobra a estranheza e a certeza de uma prosa cimentada, sem rugas nem grainhas.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.