Os bancos, que vivem um bom momento na “geração de resultados”, devem “adequar as condições dos empréstimos à capacidade de pagamento dos clientes“. A recomendação é do Banco de Portugal, que esta quarta-feira divulga o seu Relatório de Estabilidade Financeira (REF). Um dos riscos identificados pelo supervisor financeiro, que até agora vinha mostrando uma atitude relativamente tranquila mas, agora, destaca o risco de “potencial incumprimento das famílias mais vulneráveis” e também das empresas.

Os últimos anos foram marcados por um “longo período caracterizado por taxas de juro muito reduzidas” mas “a evolução do contexto económico e financeiro favoreceu o desempenho do setor bancário nos últimos trimestres, em particular a geração de resultados“, diz o Banco de Portugal. Mas neste momento, “perante os desafios e os riscos identificados, espera-se que os bancos aproveitem a melhoria do contexto económico e financeiro para adequar as condições dos empréstimos à capacidade de pagamento dos clientes“.

O Banco de Portugal espera, também, que os bancos “mantenham políticas prudentes de constituição de imparidades e de conservação de capital, que permitam aumentar a sua capacidade de absorver perdas e de financiar a economia”, afirma o Banco de Portugal, no relatório.

“É, de certo modo, um mito” haver famílias endividadas e com baixos rendimentos, diz Mário Centeno

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Mário Centeno vinha, até agora, manifestado uma visão relativamente benigna sobre o impacto da subida dos juros dos créditos na população portuguesa, considerando por exemplo que era “um mito” falar-se em famílias com baixos rendimentos e que têm grandes aumentos das prestações. Nesta fase, e porque as taxas de juro também têm continuado a subir, o Banco de Portugal já destaca o “potencial incumprimento das famílias mais vulneráveis“.

O endividamento das famílias com rendimentos mais baixos baixou nos últimos anos e o crédito à habitação está sobretudo concentrado em percentis de rendimento mais robustos, o que dá tranquilidade ao Banco de Portugal. Porém, a preocupação do supervisor está relacionada com riscos de “persistência da inflação em níveis elevados”, continuação da “subida das taxas de juro de curto prazo e do serviço da dívida” e uma “evolução mais adversa da taxa de desemprego”.

Centeno sublinha que os fenómenos de incumprimento, por vezes, “podem demorar algum tempo a materializar-se” e, por isso, não se deve assumir que só porque agora não existem “sinais visíveis” de problemas no crédito isso não significa que eles não possam formar-se no futuro. O Banco de Portugal não divulga, para já, números mais atualizados sobre o número de renegociações de crédito – designadamente ao abrigo das medidas aprovadas pelo Governo em novembro – mas promete dar alguma informação mais concreta sobre isso nas próximas semanas.

Ainda assim, o Banco de Portugal sublinha que só 6% do crédito à habitação em Portugal está nas famílias que estão no quintil mais baixo dos rendimentos, ou seja, que estão entre os 20% que ganham salários mais baixos. No segundo quintil estão 13%, no terceiro 19%, no quarto 21% e no quintil mais elevado está 42% do crédito.

Na conferência de imprensa de apresentação do relatório, o governador do Banco de Portugal sublinhou que, no atual contexto, as políticas públicas (incluindo política monetária, orçamental e outras) devem reger-se pela “coordenação“, pela “contraciclicidade” (aproveitar momentos económicos positivos para acautelar tempos menos positivos do ciclo económico) e pela “certeza“.

Esse último ponto, da “certeza”, diz respeito à necessidade de dar “previsibilidade” aos agentes económicos, isto é, “as famílias, de quem se espera um reforço da poupança, e das empresas, de quem se espera um reforço do investimento”. No que poderá ter sido uma referência indireta à recente crise política, Mário Centeno diz que “qualquer perturbação destes três princípios não trará mais estabilidade financeira ao País”.

A palavra crise não rima com estabilidade“, disse Mário Centeno.

Mário Centeno acrescentou que não existem “sinais visíveis” que apontem para um aumento significativo do incumprimento – “é um bom sinal mas tem de ser avaliado com cautela”. Para combater o surto inflacionista, “a política monetária teve de atuar de forma quase abrupta, não dando muito tempo de adaptação, não houve alternativas”, disse o governador do Banco de Portugal.

Nesta fase, “nós podemos estar a aproximar-nos do momento em que a política monetária está, em termos da fixação das taxas de juro, no ponto máximo deste ciclo de subidas”. Mas a partir daí, “as taxas não vão descer rapidamente, nem pouco mais ou menos“. Mário Centeno diz que as taxas de juro “vão continuar num nível elevado”, podendo “começar a descer nalgum momento ao longo de 2024“.

Risco de “incumprimento das famílias mais vulneráveis”

Os principais riscos e vulnerabilidades para a estabilidade financeira identificados pelo Banco de Portugal “são:

  • A turbulência acrescida nos mercados financeiros internacionais, implicando potenciais efeitos de contágio entre os ciclos financeiro e económico. Uma eventual aversão ao risco mais generalizada teria impactos adversos sobre os custos de financiamento, a valorização dos ativos e a atividade económica;
  • Uma trajetória menos favorável para o rácio da dívida pública. Os principais riscos associados a este processo derivam de um enquadramento económico e financeiro potencialmente mais adverso, com menor crescimento económico e inflação mais persistente, que motive uma reação mais intensa e duradoura das autoridades monetárias por via de taxas de juro mais elevadas;
  • O potencial incumprimento das famílias mais vulneráveis, devido à inflação elevada, à subida das taxas de juro de curto prazo e a um potencial agravamento da taxa de desemprego. A preponderância da taxa de juro variável no stock de empréstimos à habitação leva a que a subida das taxas de juro de curto prazo se traduza num aumento relativamente rápido e significativo dos encargos com a dívida;
  • O potencial incumprimento das empresas mais vulneráveis. Apesar da evidência recente de resiliência do setor, um contexto económico e financeiro mais desfavorável, caraterizado por menor crescimento económico e taxas de juro mais elevadas, poderá aumentar a percentagem de empresas vulneráveis;
  • O arrefecimento no mercado imobiliário residencial, com impacto sobre os preços e sobre o valor do colateral de créditos garantidos por imóveis. O contexto de subida das taxas de juro deverá contribuir para a desaceleração dos preços no mercado imobiliário residencial em Portugal;
  • A materialização dos riscos de mercado e de crédito no setor bancário, refletindo a interação entre uma evolução mais adversa das variáveis do cenário  macrofinanceiro e as vulnerabilidades dos setores de contrapartida”.

O Banco de Portugal acrescenta que “no quadro das suas atribuições, o Banco de Portugal manterá um acompanhamento próximo das condições reais e nominais da economia, atuando em função da sua avaliação de riscos”.