Com Tina Turner, tudo era sobre pernas e nada era apenas sobre pernas. Em 2015, a autora de “What’s Love Got to Do with It” (que morreu nesta quarta-feira, dia 24 de maio, aos 83 anos) fez um seguro de 3,2 milhões de dólares pelas suas pernas, caso lhe acontecesse algum acidente em palco – ela que na adolescência achava ser uma espécie de “pónei desengonçado”, com pernas demasiado longas para os seus 1,63m de altura.

As pernas de Tina Turner nem eram, de longe, as que tinham um prémio mais elevado. Veja-se, por exemplo, as de Mariah Carey, avaliadas em 1 bilião de dólares, ou as de Cristiano Ronaldo, asseguradas em 144 milhões de dólares, não vá o destino afastá-lo dos relvados. Mas no caso de Tina Turner, as pernas não eram apenas ferramenta de trabalho, capricho de estrela pop, mas um símbolo de libertação que correu gerações.

Morreu Tina Turner. Cantora norte-americana e diva do rock tinha 83 anos

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“Às vezes, acho que sou tão famosa pelas minhas pernas quanto pela minha voz”, dissera numa entrevista ao The Sun, em abril deste ano, quiçá relativizando toda a carga à volta do assunto. Afinal, Tina apenas as tinha à mostra para conseguir dançar melhor. Porém, este simples gesto foi o quanto bastou para que um rugido viesse à tona. Quando Tina Turner começou a mostrar as pernas em concertos absolutamente eletrizantes, muitas mulheres também se sentiram impelidas a fazê-lo. O que começou por ser um ato de emancipação pessoal, tornou-se num manifesto feminista.

Liberdade de movimentos

Da mesma forma que a década de 60 não teria sido a mesma sem a minissaia de Mary Quant, também as décadas de 70 e 80 não teriam sido iguais se Tina Turner não tivesse assumido a sua persona rock’n’roller, um avesso feminino de Mick Jagger, a quem, aliás, Tina ensinou a dançar e por quem admitiu, ao The Guardian, ter um fraquinho. Para ela, a liberdade de movimentos era tão importante em palco, como na vida. Falamos de uma mulher negra, nascida como Anna Mae Bullock a 26 de novembro de 1939, numa comunidade rural do Tennessee, que começou a dar nas vistas na década de 60, ao lado de Ike Turner, com quem casou em 1962.

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Episódio 1: “O Sequestro do Voo 131”

Os dois protagonizaram um dos duos da soul, rock e blues mais famosos de todos os tempos, reconhecidos pela Rock & Roll Hall of Fame em 1991. As suas atuações viraram lendárias no circuito R&B, à boleia de hits como “Nutbush City Limits”, “River Deep — Mountain High” ou “A Fool in Love”. Mas se no início Ike até ajudou Tina a sorrir, quando ela era apenas uma teenager dos subúrbios, abandonada pelos pais e oriunda de uma família pobre que ganhava a vida na apanha do algodão, rapidamente o relacionamento descambou, com cocaína à mistura e abusos vários que só terminaram quando Tina o deixou, em 1976.

A história está contada no documentário da HBO “Tina” (2021), de Daniel Lindsay, onde se ouvem também depoimentos do segundo marido, Erwin Bach, e de amigos próximos, como Oprah Winfrey. Antes, já Brian Gibson tinha rodado “Do with It (What’s Love Got to Do with It)” (1993), filme baseado na autobiografia da aclamada Rainha do Rock’n’Roll.

A verdadeira estreia de Tina

A seguir ao divórcio, Tina Turner desdobrou-se em atuações por salas modestas, cabarets de Las Vegas e em aparições televisivas para recuperar do abalo financeiro causado pelas quebras contratuais do fim do duo com Ike. Poucas eram as expetativas em relação ao seu futuro na música. Os anos 80 entraram em cena, impuseram o beat e a eletrónica ao swing e ao rock’n’roll de baile e, de repente, Tina viu-se com 40 anos e com as portas da indústria a serem-lhe fechadas na cara.

Foi então que tudo mudou. Primeiro em 1981, quando falou abertamente à revista People sobre as razões do fim do seu relacionamento. Só nesse momento vieram a público as agressões durante a gravidez, o controlo de Ike sobre as suas finanças ou o episódio decadente em que ele a levou para um bordel no México, na noite do seu casamento. Até então, violência doméstica era praticamente tema tabu.

Depois vieram os anos de 1984 e 1986, autênticos plot points na carreira da “Miss Hot Legs”. Comecemos pelo último, pelo momento em que Tina Turner publicou a sua autobiografia I, Tina e gerou uma onda de empatia enorme na opinião pública, especialmente nas muitas outras mulheres que sentiram em Tina a força que lhes faltava para também elas se libertarem das suas relações abusivas.

A autobiografia surgiu na sequência daquele que foi considerado pela Billboard como “um dos maiores regressos triunfais da história da música”. Contudo, para Turner, não se tratava de um regresso. Para ela, a verdadeira “Tina nunca tinha chegado a aparecer”, dissera no documentário de Daniel Lindsay.

O álbum Private Dancer, quinto na carreira, foi aquilo que ela considerou como a “estreia de Tina”, a sua apresentação pública mais autêntica. Vendeu mais de 20 milhões de cópias, conquistou três Grammys e lançou para o mundo sucessos como “Better be good to me” ou “What’s love got to do with it”. Ali estava ela, de cabeleira farta, cabedal integral quase sempre, vestido dourado de franjas num dos seus outfits mais icónicos, vozeirão trovejante, salto alto e minissaia, deixando as suas pernas soltas para dançar pelo mundo como bem lhe apetecesse.

Simply the best

Ao fazê-lo, Tina Turner estava a transmitir uma mensagem muito clara: todas as mulheres deveriam sentir-se livres para expressar a sua feminilidade e vestir-se como bem entendessem. A assunção e a revolução da identidade feminina passavam por aí. Talvez as suas pernas não se enquadrassem nos padrões da indústria da moda de então, onde a magreza extrema era apregoada como lei e as supermodelos simplesmente não comiam para poderem continuar a desfilar na passerelle, como confidenciou Beverly Johnson, a primeira modelo negra a ser capa na Vogue, em 1974.

Mas é precisamente nessa manifestação real e empoderada do corpo que reside a força da emancipação feminina em torno de uma das 100 Maiores Artistas da História para a Rolling Stone. De certo modo, Tina Turner embandeirou o movimento #MeToo bem antes da internet se multiplicar em hashtags e não será um exagero afirmar que sem ela, artistas como Janet Jackson, Mariah Carey, Ciara, que já prestaram homenagem à “diva” e “super-heroína” para a qual todos os elogios parecem ser insuficientes, e principalmente Beyoncé, referenciada como a herdeira mais fiel do legado de Tina Turner, não se teriam afirmado como superestrelas que são.

No encontro que as duas preconizaram em 2008, na cerimónia dos Grammy, cantando juntas “Proud Mary”, Beyoncé revelaria que em criança via as cassetes de Tina Turner e que sonhava ser igual a ela. “She’s the Ultimate”, dissera então, abraçando Tina com emoção de miúda. Quando ouvimos Lemonade (2016), o álbum em que Queen Bey assina um manifesto feminista absolutamente revolucionário no seu percurso, cremos estar a ouvir os ecos de Private Dancer.

Afinal, ambas cantaram a liberdade, à sua maneira, mostrando sempre as pernas. As de Tina Turner dançaram até aos 83 anos e morreram pacificamente esta quarta-feira, em casa, na Suíça, cansadas de resistir ao cancro do intestino diagnosticado em 2016. Deixaram para trás oito Grammys e tantas outras distinções. “O mundo perdeu uma lenda da música e uma modelo a seguir”, escreveu o porta-voz da cantora em comunicado. Perdeu, talvez, o mais importante par de pernas da história da pop. Simplesmente, o melhor par de pernas.