Os cinco arguidos no caso da morte de Jéssica voltaram a entrar esta quinta-feira na sala do tribunal de Setúbal. Pela quarta vez, Inês Sanches, Ana Pinto, Esmeralda Montes e Justo Montes — todos em prisão preventiva e acusados do crime de homicídio qualificado — chegaram de algemas nos pulsos, que só foram retiradas com a entrada do coletivo de juízes. O único arguido em liberdade, Eduardo Montes, e também o único que não está acusado de homicídio, foi o primeiro a chegar à sala, ao mesmo tempo que os advogados. E ainda antes do início da sessão, todos falaram com os respetivos advogados. Estava previsto ouvir a avó de Jéssica e o ex-namorado da mãe, mas nenhum deles quis prestar declarações e, por isso, o tribunal reproduziu a chamada feita para o INEM no dia em que Jéssica morreu. A chamada revelou que Inês, primeiro, contou outra versão daquilo que aconteceu ao técnico do INEM.
Os cinco arguidos e os crimes
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- Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
- Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
- Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
- Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
- Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
O Ministério Público acredita que Jéssica foi dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que Inês Sanches, sua mãe, fez por serviços de bruxaria. Terá ainda sido utilizada como correio de droga e agredida várias vezes pelos restantes arguidos. Esta quinta-feira, o tribunal esperava ouvir o testemunho de Paulo Amâncio, ex-namorado da mãe de Jéssica, mas este não quis falar, apesar de ter dito na sessão anterior que queria prestar declarações. “Não tenho advogado, estou aqui meio à toa”, começou por dizer Paulo Amâncio, acrescentando que o seu testemunho “só é válido para prejudicar”. “O senhor não está a ser julgado, está a exercer um direito cívico. Se mentir, incorre na prática de um crime de falso depoimento. Se mentir pode, obviamente, prejudicar uma pessoa que está a ser julgada”, respondeu o juiz Pedro Godinho.
E o mesmo aconteceu com a mãe de Inês Sanches, Rosa Tomaz. Depois de olhar para a filha, que estava atrás de si, as duas choraram e Rosa Tomaz usou, como disse o presidente do coletivo, o “direito a não prestar declarações, uma vez que é mãe de uma das arguidas”.
Sem mais testemunhas para ouvir durante a manhã, o tribunal quis ouvir a chamada feita por Inês Sanches para o CODU, no dia em que Jéssica morreu. “Peço desculpa, mas vai ter de ser”, disse o juiz Pedro Godinho, olhando para a mãe de Jéssica. A chamada durou pouco mais de dois minuto e foi feita por Paulo Amâncio, que indicou que um psicólogo receitou Atarax — utilizado para alergias –, mas neste caso foi usado para acalmar a criança. E ouve-se então a conversa entre o profissional do INEM e Inês Sanches:
– A menina esteve na escola de férias e fui buscá-la, só que a menina não me reage.
– Chame por ela.
– Já chamei.
– Eu vou ajudar, mãe. Chame por ela.
– Filha, filha. Não.
– Tente abrir o olho para ver se ela faz força para fechar o olho.
– Não
– Mas quem é que lhe deu esse medicamento?
– O psicólogo.
– Quando?
– Hoje.
– Os lábios são mais claros ou mais escuros?
– Ela deu uma queda na escola.
– Os lábios! Ela está deitada? Vire-a de lado. Ela está a respirar? O Atarax era de quantas miligramas? A ambulância já está a ir para aí. Quantas miligramas?
– Foi uma seringa.
– Mas quantas miligramas?
– 2,5
– Mas quanto é que lhe deu?
– Foi só hoje.
– Mas quanto, minha senhora.
– Eu vou explicar. Ela estava numa ama. Mas ela está toda marcada. Não sei se lhe bateram.
– Tem algum hematoma?
– Tem falta de cabelo.
– Mas apresenta sinais de violência? A senhora olhe para a sua filha.
– Eu acho que sim.
– A ambulância vai a caminho, mas mantenha-a deitada de lado.
A chamada terminou, quem estava na sala ficou em silêncio e a mãe de Jéssica continuou a chorar. E, depois de uma pausa e de uma mudança de sala, o coletivo de juízes quis mostrar as fotografias tiradas pela Polícia Judiciária nas casas dos arguidos. Com poucos comentários, nem perguntas, o juiz Pedro Godinho foi fazendo apenas referência aos objetos que continham vestígios de sangue.
“A mim, a Inês paga a bem, ou paga a mal”
As únicas testemunhas ouvidas pelo tribunal durante a tarde eram vizinhas e pessoas que Inês Sanches encontrava, às vezes, nos cafés que costumava frequentar. Uma das vizinhas afirmou que as duas arguidas sentadas atrás de si, Esmeralda Montes e Ana Pinto, foram até ao café situado perto de sua casa e perguntaram onde vivia a mãe de Jéssica. E diz ter ouvido de Esmeralda: “A mim, a Inês paga a bem, ou paga a mal”. E este foi o único momento, até agora, em que Esmeralda falou em tribunal, exaltada. “Desculpe lá, eu disse isso?”, questionou Esmeralda, que foi de imediato interrompida. “A minha função é zelar para que isto corra bem. Não quero que existam aqui suspeitas de que as testemunhas são ameaçadas”, avisou o juiz Pedro Godinho.
Foram ouvidas quatro pessoas durante a tarde e todas disseram conhecer apenas vagamente Inês, através das suas passagens pelos cafés. No entanto, uma delas conseguiu dar mais pormenores sobre as semanas anteriores à morte de Jéssica. “A menina tinha uma marca de dentada num braço, um braço também com nódoas negras. Eu perguntei :’porque é que não vais ao hospital?’ E ela dizia: ‘porque depois dizem que são maus tratos da minha parte'”, descreveu esta testemunha.
Inês Sanches não quis falar em tribunal, e disse-o logo na primeira sessão deste julgamento, mas o coletivo de juízes quis que fosse reproduzido o depoimento que prestou à Polícia Judiciária logo a 24 de junho, quatro dias depois da morte de Jéssica. No entanto, tendo em conta, mais uma vez, que a funcionária judicial inicia a sua greve a partir das 17h, a audição do depoimento da mãe de Jéssica foi adiado para a próxima sessão e foi apenas ouvido o testemunho que Justo Montes fez logo na primeira sessão do tribunal, quando falou sobre uma alegada queda de Jéssica.
A greve, os vestígios de Jéssica em isqueiros e mocas e a amizade da mãe e da mulher que fez serviços de bruxaria
Até agora, todas as sessões têm sido marcadas pela greve dos funcionários judiciais, que decorre a nível nacional. O fim da paralisação está previsto para 31 de julho e, por isso, o coletivo de juízes deste processo decidiu pedir serviços mínimos logo na primeira sessão. No primeiro dia em que os quatro arguidos entraram na sala de audiência, a sessão só começou depois das 11h e não se realizou durante a tarde, uma vez que a funcionária judicial se juntou à greve.
No primeiro dia, apesar da greve, ainda foi possível ouvir Justo Montes, marido de Ana Pinto. Em prisão preventiva e acusado de tráfico de droga, violação e homicídio qualificado, este homem não conseguiu dar ao tribunal uma visão clara daquilo que terá acontecido, negando apenas as agressões a Jéssica. “É tudo mentira”, foi repetindo à medida que o juiz Pedro Godinho fazia as perguntas. “Não sei, não tenho nada a ver com isso e não quero saber”, acrescentou. E mesmo quando a funcionária judicial mostrou a Justo Montes as fotografias da autópsia, este não mostrou qualquer empatia pela violência que as imagens transmitiam.
O coletivo de juízes foi insistindo com Justo Montes, mas este homem nunca apresentou qualquer justificação para as múltiplas marcas no corpo e na cara de Jéssica, reconhecendo apenas que a criança caiu de uma cadeira. “Foram encontrados vestígios da Jéssica em isqueiros que estavam em sua casa”, disse o juiz Pedro Godinho, que não obteve, mais uma vez, uma justificação clara.
Mas não foi apenas nos isqueiros que a Polícia Judiciária encontrou vestígios da criança. No terceiro dia de julgamento, que decorreu esta segunda-feira à tarde, o tribunal ouviu o testemunho de Alexandrino Biscaia, pai de Jéssica, e revelou que foram encontrados vestígios numa moca, que estava dentro de uma mochila, em casa de Inês Sanches. A moca e a mochila pertenciam a Alexandre Biscaia e o coletivo quis saber por que motivo estavam estes objetos em casa da sua ex-companheira. No entanto, as respostas não foram claras e o Ministério Público não ficou convencido. A procuradora considerou que existiu falsidade nas declarações e pediu ao tribunal a reprodução do depoimento que Alexandrino Biscaia fez aos inspetores da Polícia Judiciária.
Nas últimas sessões, ficou ainda a saber-se, de acordo com o depoimento de Eduardo Montes, o único arguido e em liberdade, que Inês Sanches e Ana Pinto já se conheciam há vários anos e teriam uma relação de amizade. “A Inês conheço de vista há uns seis anos, oito anos, por ela ser amiga da minha mãe”, disse Eduardo Montes. “Elas eram amigas, andavam sempre juntas”, acrescentou.
Ministério Público fala em “palmadas, murros, bofetadas e pancadas”
O fim da vida de Jéssica, acredita o Ministério Público, começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado, que fala esta quinta-feira em tribunal. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.
Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.
Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.