Começa a ser habitual: sempre que os Red Hot Chili Peppers encabeçam o cartaz de um festival em Portugal, o dia em que atuam acaba por esgotar. Foi assim há seis anos, no Super Bock Super Rock, e foi assim esta quinta-feira, no NOS Alive. O festival arrancou sem bilhetes à venda para os dois primeiros dias e com uma enchente de fãs vestidos a rigor para verem a banda de Anthony Kiedis, Flea, John Fusciante e Chad Smith.
Com 41 anos de carreira (parece mentira, mas é verdade), os Red Hot Chili Peppers dificilmente apresentam hoje algo de novo. Experientes e consistentes, a vida de palco assenta-lhes como uma luva. Sabem o que fazem, e isso nota-se. Não há deslizes, passos falhados — apenas rock e muita atitude, mesmo com pés engessados, como aconteceu com Kiedis. O vocalista, famoso pelos saltos e piruetas, esteve mais comedido em Algés. Talvez por isso o alinhamento desta quinta-feira tenha sido mais ‘suave’ do que é habitual e tenha tido muitas (demasiadas) baladas e jams à mistura. Para compensar, Flea entrou em palco a fazer o pino.
Mas antes de cair no embalo suave, que quase roçou o tédio, o concerto começou com promessas de um fim de noite animado. Depois de uma introdução puramente instrumental, os Red Hot Chili Peppers avançaram rapidamente para “Can’t Stop”, um dos temas mais conhecidos da banda. A “Universally Speaking”, seguiu-se “Dani California”, “Aquatic Mouth” e “Suck My Kiss”. O som estava excelente, a banda alinhada e a lua brilhava alto, segundo disse Flea. Depois vieram as músicas mais calmas, que dominaram o resto do concerto, que só retomou o ritmo no encore, com “Under the Bridge” e “Give It Away”. Kiedis apareceu sem camisola e de boné, e a banda gastou os últimos cartuchos num último esforço energético, mas insuficiente.
Não sabemos se foi do pé engessado do vocalista, da escolha do alinhamento ou se os Red Hot Chili Peppers estão finalmente a sentir o peso da idade (quem os pode censurar?), mas o que é certo é que esta noite de quinta-feira, no Passeio Marítimo de Algés, a banda não foi bem a mesma de antes. Quem assistiu ao concerto de há seis anos no Super Bock Super Rock, terá notado diferença na forma como o grupo foi capaz de gerar energia e de a transmitir ao público, contagiando-o. Houve alguma coisa nesse contacto que se perdeu e que fez com que o concerto desta quinta-feira à noite deixasse um gostinho amargo na boca.
Ana Lua Caiano: entre a tradição portuguesa e a vanguarda digital
Várias horas antes, coube a Ana Lua Caiano a exigente tarefa de fazer um dos primeiros concertos deste NOS Alive. A artista portuguesa, que se tem vindo a afirmar cada vez mais como um valor seguro na música contemporânea nacional, foi recebida por uma plateia considerável de portugueses e estrangeiros, com algumas pessoas que claramente conheciam a sua música, mas sobretudo uma maioria de curiosos, ansiosos por começar mais uma época de festivais.
Ao vivo, a sua fusão entre ritmos (e instrumentos) tipicamente portugueses e elementos eletrónicos reforça esta segunda faceta, com os sons graves a sobressaírem e até, por momentos, a ofuscarem a sua voz cristalina. Caiano lançou há um par de meses o seu mais recente EP, Se Dançar É Só Depois, que sucedeu a Cheguei Tarde É Ontem (2022). Foram estes os discos que serviram de base ao concerto.
Visualmente, a cantora e compositora retrata precisamente a sua música em palco. Vemo-la a operar um conjunto de máquinas digitais, assente numa plataforma que parece representar um campo de trigo. O digital e o rural misturados, a vanguarda e a tradição lado a lado, de mãos dadas, ou, melhor, a baterem palmas, como tantas vezes a sua música pede. A forma é realmente o que a distingue, embora o conteúdo seja particularmente eficaz: afinal, escreve e canta sobre temas universais, com que qualquer um se pode relacionar.
“Vou Abaixo, Volto Acima” fala sobre alguém que vai abaixo e é obrigado a voltar; “Nem Mal Me Queres” retrata uma relação tóxica; “Que o Sangue Circule” aborda a vontade de viver. Ana Lua Caiano parece balançar no equilíbrio perfeito entre aquilo que é pop e facilmente consumível, e o risco e a inovação artística. Embora a sua atuação tenha sido quase sempre solitária, convocou Fred Ferreira para acrescentar a sua bateria imponente a dois temas. “Estou super contente de estar neste festival incrível, é mesmo um privilégio”, disse, antes de fechar com o single “Mão na Mão”. Resultado final? Uma ovação e muitos novos fãs a apontarem o seu nome.
O Alive ficou sem fôlego com Jacob Collier (e sem reação com os Puscifer)
Com os seus fatos pretos e óculos de sol, os Puscifer pareciam saídos de um episódio dos “Ficheiros Secretos”, mas a banda garantiu que não tinha más intenções e que vinha “em paz”. “Somos uma banda de rock ‘n’ roll e tocamos rock ‘n’ roll. Vimos em paz. Não somos um agência secreta à procura de vida extraterrestre”, declarou Maynard James Keenan, vocalista e fundador do grupo.
Os avisos talvez não tenham sido suficientes — a banda fundada em 1995 caiu como que de paraquedas no Passeio Marítimo de Algés. Os espectadores deram-lhe pouca atenção, provando que o horário (final da tarde) e o local não eram os mais indicados. Os “agentes secretos” ficavam muito melhor numa sala fechada e numa horário mais tardio e, por isso, caíram mal. Não é que o concerto não tenha sido bom, mas nem tudo encaixa bem num festival. E a escolha dos Puscifer, com o seu eletro-rock, as suas referências extraterrestres, luzes verdes e coreografias descompassadas revelaram-se uma escolha pouco acertada para um final de tarde no NOS Alive.
Melhor aposta foi a de Jacob Collier, que atuou no Palco Heineken pelas 20h30. Collier ainda é jovem, mas a fama enquanto multi-instrumentista e os anos que já leva disto (estreou-se em 2016, com o álbum In My Room) valeram-lhe uma dedicada legião de fãs, incluindo em Portugal. Pouco antes das 20h30, já o espaço junto ao palco secundário estava cheio com uma multidão animada e ansiosa.
“Como é que é Lisboa?”, perguntou o cantor, compositor e multi-instrumentalista num português treinado e quase sem sotaque. O público respondeu com uma ovação e Collier puxou pela audiência, saltando e entoando harmonias que os espectadores foram repetindo até que se sentou no piano para o primeiro tema. Do piano, passou para a percussão e da percussão para os teclados e para a pandeireta, trocando de instrumento com a mesma rapidez com que transitava entre sonoridades, do jazz ao funk, passando por alguma outra coisa impossível de identificar. Musicalmente nem sempre parece fazer sentido, mas os fenómenos são assim: o público gosta e isso é suficiente para justificar a presença de Colier num dos maiores festivais de música do país.
Depois de “Feel” e “Count the People”, pegou na guitarra acústica para a mais emotiva “Hideaway”. A um tema “um bocadinho funk”, seguiu-se “uma música muito curta”, mas longa o suficiente para se perceber o jeito de Collier com a guitarra — “The Sun in Your Eyes”. Novamente no teclado, o músico inglês repetiu um momento habitual nos seus concertos — uma versão de “Can’t Help Falling in Love”. Eram 21h30 e o concerto continuou ainda por mais meia hora, com um Collier saltitante e cativante, capaz de conquistar Algés e arredores.
O momento R&B de Yaya Bey
De volta ao palco WTF Clubbing, chegava a hora de nos encontrarmos com Yaya Bey, que finalmente se estreou em Portugal depois de no ano passado ter cancelado um concerto em Guimarães, no festival Mucho Flow. A jovem cantora norte-americana é uma das novas estrelas do R&B. Parece carregar o legado do género musical, e da sua cidade de Nova Iorque (é, aliás, filha de um rapper local dos anos 90), já que a sua música mantém um certo apelo clássico. Por outro lado, as suas canções também são suficientemente refrescantes para soarem ao presente.
No palco, Yaya Bey apresentou-se acompanhada de uma guitarrista, um baterista e um teclista, que deram corpo aos instrumentais. Fazendo uso da sua voz maleável, conseguiu cumprir o objetivo de elevar a sua música ao vivo — por vezes com mais preponderância da guitarra, noutros casos chegando a um registo reggae, nalgumas faixas empregando uma estética mais convencional de R&B. O álbum Remember Your North Star (2022) e o EP Exodus the North Star (2023) serviram de mote para a performance.
A cantora também se destacou por aquilo que foi dizendo entre temas. Procurou desde início propor uma reflexão ao público europeu sobre a sua história, afirmando que Portugal deve uma grande indemnização a diversos países, referindo o caso do Brasil. “Têm de ir para casa e falar com a vossa família sobre como os europeus lixaram África e a América”, provocou Yaya Bey, antes de partir para os elogios. “Mas os portugueses são os meus europeus favoritos. Têm ótima comida e lavam as mãos quando vão à casa de banho”, disse, dedicando depois uma canção a Carlos, o motorista “bondoso” que conseguiu animar o seu estado de espírito “depressivo”. Como a própria resumiu, justificando o motivo para dialogar entre músicas: “Também sou humana, não quero estar aqui apenas para o vosso entretenimento”.
Uma máquina de festa chamada Ibibio Sound Machine e o (blues) rock que resulta dos The Black Keys
Fosse qual fosse a banda, atuar antes dos Red Hot Chili Peppers significaria sempre que não haveria uma enorme plateia. Foi precisamente o que aconteceu com os Ibibio Sound Machine, mas que souberam aproveitar ao máximo o lema do “poucos, mas bons”.
A banda formada em Londres, mas cujas sonoridades atravessam diversos continentes, proporcionou ao palco Heineken uma autêntica explosão de sons e euforia. Afinal, eram sete instrumentistas de diferentes nacionalidades em comunhão, a criar universos repletos de texturas e detalhes sonoros, cada vez que as cordas se cruzavam com os sopros, a percussão e os elementos digitais. À sua frente, a liderar a comitiva, a carismática e enérgica vocalista Eno Williams.
Os Ibibio Sound Machine, cujo nome presta tributo a um povo originário da Nigéria, fundem afrobeat com funk e música eletrónica, juntando o melhor dos dois mundos, da instrumentação acústica e eletrónica. Vieram apresentar o álbum Electricity (2022), mas também vários temas de discos anteriores. “Adoro-vos, é tão bom estar em Lisboa”, atirou Eno Williams para a plateia, procurando sempre atiçar a festa. “É bom ver tantos rostos bonitos.”
A seguir aos Red Hot Chili Peppers, os também norte-americanos The Black Keys eram o maior nome do cartaz desta quinta-feira do NOS Alive. A banda de Dan Auerbach e Patrick Carney, formada em 2001 no estado do Ohio, tocou no palco principal depois de Puscifer. A audiência estava mais composta (e atenta) e respondeu bem ao blues rock bem feito dos The Black Keys.
A banda lançou recentemente um álbum de originais, Dropout Boogie, mas este não foi o foco do alinhamento, que incluiu apenas um tema do novo disco, “Wild Child”. Em vez disso, os The Black Keys apresentaram um conjunto de temas que passou em revista a sua discografia e que incluiu, por exemplo, “Lonely Boy”, a despedida obrigatória de todos os espetáculos, e “Howlin’ For You”, outra canção do multi-platinado El Camino (2011). Afinados, a banda animou a audiência, que cantou e dançou, e aqueceu os ânimos de um dia que se fez morno no Passeio Marítimo de Algés.
A parceria já tinha acontecido, tanto em disco como em palco, e voltou a repetir-se na primeira noite deste NOS Alive. Pedro é da Linha de Sintra, Kelman Duran da República Dominicana. Em comum têm a paixão pela cultura clubbing, pela descoberta de novos sons, e o facto de serem produtores natos e versáteis requisitados pelos grandes nomes. Se Pedro da Linha produz instrumentais (e discos) para alguns dos principais músicos portugueses, Kelman Duran está creditado no mais recente álbum de Beyoncé. No palco WTF Clubbing, dedicaram-se aos sons graves, desde versões de funk brasileiro a música eletrónica de diversas latitudes: o DJ set duplo foi a receita ideal para fazer a festa e agitar o corpo depois de Red Hot Chili Peppers.