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Vestígios de bombas atómicas marcam o início de nova época geológica num lago canadiano

Este artigo tem mais de 1 ano

Camadas de sedimentos claras e escuras deixam ver o rápido aumento, ano após ano, dos poluentes lançados na atmosfera (pela queima de combustíveis ou bombas atómicas): a marca do homem na geologia.

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O lago Crawford numa área protegida perto de Toronto, no Canadá

AFP via Getty Images

O lago Crawford numa área protegida perto de Toronto, no Canadá

AFP via Getty Images

Uma “placa de lama congelado” do lago Crawford, no Canadá, poderá vir a simbolizar o início da época geológica Antropoceno, aquela que é marcada pela influência crescente da atividade humana. Nas camadas de lama depositadas ano após ano no fundo do lago é possível identificar evidências do aumento do consumo e queima de combustíveis fósseis e a presença de plutónio resultante dos testes com bombas atómicas.

A proposta foi apresentada esta terça-feira pelo Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno, da Comissão Internacional de Estratigrafia, no Congresso Internacional de Estratigrafia, em Lille (França). O estabelecimento da secção e ponto de estratótipo limite global (GSSSP, na sigla em inglês para Global Boundary Stratotype Section and Points) é um passo-chave para que se possa estabelecer esta transição geológica, mas até que o Antropoceno possa ser considerado uma unidade geológica universal terá de ser ratificada pela subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, a Comissão Internacional de Estratigrafia e a União Internacional de Ciências Geológicas. Esta declaração oficial não acontecerá antes de agosto de 2024, de acordo com o jornal The Guardian.

A placa de sedimentos congelados tem linhas escuras e claras, perfeitamente definidas, que permitem identificar os anos e se aconteceram no verão ou inverno

As camadas que representam os sedimentos depositados no verão e inverno de cada ano são perfeitamente visíveis nas amostras recolhidas no lago Crawford, no Canadá

PETER POWER/AFP via Getty Images

O que é o Antropoceno?

Vivemos atualmente no Holoceno, uma época do período Quaternário, da era Cenozoica, que se iniciou há cerca de 11.700 anos, no fim do último período glacial ou idade do gelo. O Antropoceno é visto como o momento da “Grande Aceleração”, quando a população humana e os padrões de consumo aumentaram rapidamente, ou seja, a partir dos anos 1950. O início do Antropoceno marcaria assim o fim de uma época de um ambiente globalmente estável.

“Foi a grande aceleração que decidimos usar como um importante ponto de inflexão na história da Terra. Mas foi o aumento na acumulação de plutónio-239 especificamente que escolhemos como marcador”, disse Francine McCarthy, geóloga na Universidade Brock (Canadá) e membro do Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno, citada pelo The Guardian.

O conceito foi criado por Paul Crutzen no início do século, quando o referiu numa conferência, no México, no ano 2000, provocando a surpresa dos presentes. Para o investigador, esta nova época era caracterizada pelo domínio do homem sobre os processos biológicos, químicos e geológicos. Antes disso, em 1995, Paul Crutzen recebeu o prémio Nobel da Química, por ter identificado processos que levavam à perda da camada de ozono.

O que procuram os investigadores?

Nos últimos 15 anos, o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno tem avaliado a informação física, química e biológica preservadas nos sedimentos e nas rochas mais recentes do planeta Terra, explicou ao Alejandro Cearreta, catedrático de Paleontologia da Universidade do País Basco e membro do grupo de trabalho, em declarações ao Science Media Center Espanha (SMC España).

O grupo (AWG, na sigla em inglês) já tinha considerado, em 2016, que se justifica a criação de uma nova época geológica, agora o objetivo é verificar se existem mesmo fundamentos válidos para o Antropoceno ser considerado uma nova unidade de tempo geológico e qual seria a sua melhor definição.

“A maioria das equipas que apresentaram as suas propostas identificaram o plutónio [principal produto de reações nucleares] como o indicador principal e propuseram o início do Antropoceno a partir do aumento do sinal deste elemento radioativo artificial, maioritariamente, que se encontra nos sedimentos e nas rochas depositadas em todo o planeta desde o início dos anos 1950”, explicou Alejandro Cearreta.

Qual a importância dos sedimentos do lago Crawford?

Em 2019, o AWG deu início a um projeto colaborativo com a Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas Mundiais), em Berlim, e o Instituto Max Planck para a História da Ciência (ambos na Alemanha) com o objetivo de analisar quais os locais mais adequados para definir o estratótipo (GSSSP) que marque o início do Antropoceno — o conjunto de estratos geológicos de referência para esta unidade de tempo geológica. Como anunciado esta terça-feira, o lago Crawford no Canadá foi selecionado como o local que contém o registo sedimentar de referência para o início do Antropoceno.

“Os sedimentos que se acumulam no fundo [do lago] são formados por camadas anuais denominadas varvas lacustres [depósitos laminares de origem glaciar]”, referiu Alejandro Cearreta. “A camada proposta como marcador do estratótipo do Antropoceno encontra-se numa folha de calcite depositada no verão de 1950 e foi selecionada devido ao rápido aumento do plutónio, no lago, a partir de então. Este sinal também coincide com um aumento de partículas esferoidais de carbono [originadas pela queima de combustíveis fósseis a altas temperaturas], uma importante mudança no ecossistema identificada por um declínio no pólen de ulmeiro e uma substituição de espécies de diatomáceas que vivem no lago.”

“Essas camadas anuais registam produtos da queima de combustíveis fósseis, plutónio, mudanças na geoquímica, mudanças na microecologia – todos os tipos de coisas que mapeiam a mudança ambiental”, disse Simon Turner, investigador no University College de Londres (Reino Unido) e secretário do Grupo de Trabalho do Antropoceno, à BBC News.

Há consenso na comunidade científica?

A geóloga e membro da Unidade de Cultura Científica do Instituto Geológico e Mineiro de Espanha, Blanca Martínez, considera que “utilizar uma amostra obtido no fundo de um lago como possível GSSSP do Antropoceno é uma decisão acertada“, porque os sedimentos depositados nos lagos são uma ótima forma de registar as alterações ambientais recentes, conforme disse ao SMC España.

Juan Carlos Gutiérrez Marco, geólogo e paleontólogo no Instituto de Geociências (Espanha), também considera que o “trabalho de seleção do lugar é sólido”, os sedimentos conservam “todos os indicadores estratigráficos próprios de um ambiente com mudanças geológicas”. Outra coisa é dizer que a camada de 10 a 13 centímetros de sedimentos considerada seja suficiente para poder definir uma nova unidade de tempo geológico — que se mede em milhares ou milhões de anos.

“O Antropoceno deveria continuar a ser um metaconceito utilizável por todo o tipo de pensadores, artistas e cientistas, e parece-me ridículo que uma élite minoritária de geólogos se empenhe em criar uma data (1950) para ajustar o termo aos seus interesses”, referiu o investigador, citado pelo SMC España.

Alexander Farnsworth, investigador na Universidade of Bristol (Reino Unido), também questiona se será mesmo necessário considerar o Antropoceno uma época geológica, geralmente medida em milhares de anos.

Juan Carlos Gutiérrez Marco acrescenta ainda que, apesar de os sedimentos dos lagos serem bons registos geológicos, a informação contida no estratótipo referido, nomeadamente a radioatividade, vai desaparecer. “O plutónio detetado em algumas camadas do lago Crawford têm um tempo de meia vida de 24.100 anos e deixarão de ser detetáveis ao fim de 100 mil anos, números quase irrelevantes à escala geológica”, disse.

Blanca Martínez concorda que as amostras de sedimentos nos lagos têm limitações, porque estes ambientes são muito sensíveis a alterações globais, mas também perturbações locais, como incêndios ou modificações nos sistemas hídricos contíguos. Assim, a geóloga defende que se identifiquem outros locais de referência para que se possa distinguir as alterações globais das locais. Antes da seleção do lago Crawford estiveram em análise um total de 12 locais candidatos.

O que muda na vida das pessoas?

Na verdade, muito pouco (ou nada). Os resultados da investigação são mais uma prova do impacto que a atividade humana tem tido no planeta e que urge contrariar.

“Com este encontro internacional, avança-se mais um passo na discussão geológica sobre a possível definição do Antropoceno como uma nova divisão temporal na história da Terra, mas a sua ratificação é de responsabilidade exclusiva do campo científico”, esclareceu Blanca Martínez. “No plano social, deveria servir como apresentação de novas evidências científicas, sólidas e rigorosas de que os seres humanos são capazes de alterar os ciclos biogeoquímicos naturais do nosso planeta com as suas ações, e que isso fica marcado nos sedimentos de todo o mundo. Por enquanto, continuaremos a viver no Holoceno Superior.”

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