É o primeiro romance de Michael Magee, autor irlandês, e surpreende pelo pulso firme que revela. O autor, que o The Observer/The Guardian já considerou um dos dez melhores romancistas para o ano de 2023, chega agora a Portugal com o selo da Bertrand Editora.

Natural de Belfast, Magee é o editor de ficção da Tangerine Magazine. Entre outras, tem publicado textos na Winter Papers e na Stinging Fly. É doutorado em Escrita Criativa pela Queen’s University de Belfast, doutoramento esse que teve este Perto de Casa na base.

Num romance que se lê sem solavancos, Magee conta a história de Sean, que, com 22 anos, em vez do futuro à frente, vê a ausência de perspectivas. Agora licenciado, encara um mercado de trabalho que não escoa o conhecimento especializado, e o que daí vem é a sensação de uma vida interrompida ou empancada: afinal, os anos passados na Universidade foram também eles interregno.

Ao longo da leitura, vai estando sempre presente a sensação que está paredes-meias entre o desespero e a falta de esperança. O acesso ao ensino contrasta com a ideia de que o ensino em si abre portas para algures. Tudo isto, mais do que mero resumo, são elementos que vão servindo para marcar o passo da narrativa, uma vez que o autor apanhou bem a sensação que parece permear todos os momentos, desde os que aparentam ter a lassidão da resignação aos que incluem o estímulo das drogas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A acção começa com Sean a agredir um desconhecido. A partir daí, volta-se atrás, cogitam-se os passos até ao momento e, sobretudo, explora-se a possibilidade do que acontecerá depois. No panorama, temos sempre aquela realidade que lhe sabe a coisa pouca: depois de sair para estudar, volta para estar desempregado. Em Belfast, é difícil encontrar emprego, e a isto alia-se a sensação de que a cidade cristalizou. A austeridade é evidente, assim como o é uma certa ideia de que a cidade fecha as vidas e as cabeças – quem lá está continua igual, o que por si só aumenta a frustração, demonstrando que a saída, a fuga, não serviu para nada. Ainda por cima, quem ficou também sonha partir. Com isto, também neste jovem adulto se vai esbatendo a fronteira entre os sonhos da juventude e a resignação da vida adulta.


Título: “Perto de casa”
Autor: Michael Magee
Editora: Bertrand Editora

Tradução: Rute Mota
Páginas: 288

A escrita é escorreita, Magee vai directo à acção, e por isso o leitor nunca se perde de um rapaz que está perdido. Parte da sua perdição é ter feito tudo bem – trabalhou, estudou, cumpriu o que era esperado, razão pela qual a vida atropelada se torna mais difícil de lidar. A vida sabe a mesmice, o regresso sabe a não ter partido: os mesmos amigos continuam a fazer as mesmas coisas e a sair nos mesmos bares, as mesmas portas continuam fechadas. Numa breve passagem, o autor traça o cenário:

Foi um golpe de sorte que aproveitámos ao máximo todas as noites em que tínhamos dinheiro para uma garrafa de vodca, mas começava a tornar-se monótono. Há um limite para as festas que se pode dar e, quando há cada vez menos pessoas com quem as fazer, começamos a ter a sensação de que não há mais lado nenhum para onde ir. Ficamos presos neste buraco com os mesmos três ou quatro rostos para o resto da nossa vida, a beber, a tomar drogas, a andar às voltas pelo local até não restar ninguém com quem falar.” (p. 20)

A falta de emprego dita a falta de lugar do mundo e dita também o lugar onde o bem-estar mora. A noite da agressão implicará um fogo-fátuo na vida de alguém agora forçado a habituar-se ao cinzentismo, ao mesmo tempo que incapaz de aceitar a frustração. Se há a placidez da vida, não deixa de haver o rasgo do imediatismo que o desespero vai trazendo, esse de quem vive num apartamento degradado com um amigo, sem hipótese de lá sair, enterrando as noites em álcool e drogas, trabalhando de forma precária numa discoteca.

No romance, Magee propõe-se a encarar as consequências de uma noite que, sendo excepção, é apresentada como norma, sendo Sean apresentado como bully. Numa só personagem, o autor consegue ir além de uma cara, pondo em cena o estado de uma sociedade, o peso do desemprego, a violência nas ruas, a degradação que o álcool impõe, o desespero de alguém que não sabe o que fazer da vida.

Além de Sean, o livro vai tendo um conjunto de personagens extraordinárias, e isto pelo simples facto de serem absolutamente banais, aqui no sentido de reconhecíveis, plausíveis, mundanas – ou seja, gente a sério. A mãe de Sean, por exemplo, que engravidara na adolescência, é agora mãe de três, divorciou-se duas vezes e tenta sobreviver aos dias na precariedade de quem limpa casas alheias. Os irmãos de Sean, noutro exemplo, combatem os vícios que ganharam numa vida sem esperança, ao mesmo tempo que têm de lidar com os próprios impulsos agressivos, dos quais escapam em festas que duram a noite inteira.

Com isto, o livro vai mostrando de que forma crescer neste ambiente em particular molda a vida ao mostrar estas vidas já compactas. Ninguém é vítima e ninguém é carrasco, mas todos são a vida daquela circunstância. Belfast aparece então como terra sem caminho, e regressar depois de partir sabe à maior das derrotas. Só lá estar já implica falhanço.

Michael Magee concatena estes elementos num exercício que aparenta não ter dificuldades. Quem lê só vê a história sem encontrar solavancos. A prosa, ao ser limpa, vai ao que interessa, e o leitor vê apenas o cerne. Assim, a narrativa parece ter sido depurada até ao essencial. Não se sentem gorduras nem gestos de maquilhagem ou voos de linguagem escusados. Ao invés disso, a prosa está ao serviço do enredo, e o enredo aproveita para trazer e realizar a densidade psicológica das personagens, que por sua vez se erige no contexto social. Este último, mais do mero enquadramento ou cenário, ou seja, lugar para situar, compõe a narrativa: fá-la ao invés de meramente a possibilitar. Os diálogos são vivos, as vozes soam a gente a falar, o cenário é sempre credível e, ao contrário da vida de Sean, a leitura não empanca.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.