Cada novo livro de Claire Keegan é um acontecimento. A escritora irlandesa publica apenas esporadicamente, como se passasse vários anos a escolher minuciosamente as palavras certas para os seus textos. Os livros são sempre curtos, mas com histórias belas e poderosas, sobre pessoas banais que se sentem assoberbadas pelas coisas simples do dia a dia. O pano de fundo é sempre a Irlanda, contraditória e complexa.
Desde 1999, a escritora lançou apenas quatro pequenos livros. O último, Pequenas Coisas Como Estas, foi finalista do Booker Prize no ano passado. Antes desse, editou Acolhimento, recentemente disponibilizado em Portugal pela Relógio D’Água, com tradução de Marta Mendonça. O conto, mais curto do que Pequenas Coisas Como Estas (uma novela), venceu o Davy Byrnes Irish Writing Award em 2009, um ano antes de sair em livro.
Acolhimento conta a história de uma menina (sem nome) que é deixada pelos pais ao cuidado de um outro casal, sem filhos, que vive numa quinta na zona rural da Irlanda. Os pais atravessam um período particularmente difícil em termos financeiros e a mãe está novamente grávida.
O ano não é especificado, mas as referências à greve de fome de membros do IRA detidos numa prisão na Irlanda do Norte, logo no início, à CEE e aos apoios aos agricultores irlandeses, levam a crer que a história se passa no início dos anos 80, numa Irlanda dividida que lutava para se manter de pé e acompanhar o resto da Europa.
Título: “Acolher”
Autor: Claire Keegan
Tradução: Marta Mendonça
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 80
A menina é deixada pelo pai na casa do casal num dia quente de verão sem que lhe diga quando poderá regressar a casa. Com a nova família, a criança conhece uma abundância, cuidado e afeição que até então desconhecia. Passado o desconforto dos primeiros tempos, começa lentamente a florescer (e até dá “um pulo”) e a integrar-se no dia a dia na quinta e da família.
Tudo muda no dia do velório de um vizinho. A menina, deixada ao cuidado de uma vizinha para que os cuidadores possam prestar a sua homenagem ao falecido, descobre um segredo que lhe tinha sido ocultado e que explica o porquê de ter sido deixada naquela casa e não noutra. Alguns dias depois, uma carta da sua mãe anuncia que terá de regressar a casa, um espaço frio, em contraste com o lar acolhedor do casal que a recebeu. As irmãs olham para ela com desconfiança, como se fosse uma distante prima inglesa; o irmão mais novo chora; e a mãe olha-a de lado, convencida de que algo não está bem. O pai continua indiferente.
Quando o casal se levanta e parte, deixando-a de novo entregue à sua família, a menina percebe que algumas coisas podem, e devem. ser diferentes. E que a vida é muito mais complexa e que há alguns segredos que vale a pena serem mantidos.
A história simples de Acolher esconde uma reflexão sobre a fragilidade da vida e também sobre a história da Irlanda. Nos anos 80, a Irlanda ainda era um país predominantemente rural. Ainda a tentar afirmar-se enquanto país (a independência tinha sido declarada menos de 60 anos antes), vivia num grande atraso económico, que a colocava muito atrás dos restantes países europeus, uma situação que afetava sobretudo os mais desfavorecidos.
Num país ultra católico e ultra conservador, os métodos contracetivos ainda eram acessíveis a toda a gente (só seriam a partir de 1985) e era comum encontrar famílias numerosas que tinham dificuldades em sustentar-se, como a da menina do livro de Keegan. A sua história é a história da própria Irlanda (historicamente representada como uma mulher), ainda à procura do seu lugar no mundo maior que durante séculos lhe esteve vedado.
À semelhança do que fez de forma mais alargada em Pequenas Coisas Como Estas, Keegan desenvolveu em Acolher uma pequena história (e um texto belíssimo) para fazer pensar sobre as relações familiares e humanas, a vida, e a história complexa da Irlanda, que determina o destino das personagens.