O primeiro disco de Julie Byrne, Not Even Happiness, começava com um dedilhado delicado e lento antes de uma pequena pausa dar lugar à voz – é daqueles momentos que um melómano não esquece, o equivalente musical ao instante em que determinada pessoa percebe quem será a mãe dos seus filhos ou que um nerd vê o código compilar, uma página web surgir sem nada crashar e simplesmente sabe que nunca mais irá deixar de teclar pequenas instruções num ecrã.
Este tipo de elogios reserva-se por norma à sorte de vozes capazes de partir vidros, derrubar uma montanha, provocar tsunamis – as chamadas vozes poderosas, torrenciais, seja a de um Scott Walker ou de uma Fatima Miranda ou de uma Bjork; as vozes que só conseguem ser descritas com recurso aos elementos essenciais da natureza (o fogo, a lava) e que associamos a catástrofes ou epifanias. As vozes furacão (lá está: a natureza), as vozes que terraplanam tudo à sua passagem, que nos atropelam.
Falamos pouco de como nos consomem as vozes que se aninham ao nosso lado, como um gatinho mimalho, das vozes que se enleiam à volta do nosso pescoço, como um cachecol em dia de inverno, das que não provocam explosões mas que derretem o nosso cinismo, que se multiplicam pelas células dos nossos órgãos conduzindo a exata dose de melancolia e esperança pelo sangue fora, até reduzirem as nossas defesas e nos tornarem seres impotentes, quase impotentes, perante o seu mistério: penso na primeira vez que ouvi Hope Sandoval, a voz dos Mazzy Star, e soube que o meu destino era apanhar um avião para os EUA, casar com Hope e viver os meus últimos dias na balaustrada, a ler, enquanto ela tocasse banjo e cantasse depois do jantar.
Não comprei a viagem, não casei, não faço ideia se a senhora Sandoval toca banjo – mas quando ouvi pela primeira vez a voz de Julie Byrne em “Follow my voice”, a canção que abria Not Even Happiness, pensei que sim, claro, óbvio que sigo a tua voz seja para onde for. Porque a voz de Julie Byrne não é propriamente deste mundo, parece pairar dois palmos acima dos humanos, ser composta da matéria que compõe os sonhos, de nenúfares, pétalas de rosa e algodão doce.
[ouça o álbum “The Greater Wings” na íntegra através do Spotify:]
O algodão, uma matéria-prima quase ubíqua na nossa vida, amada por todos, tem os seus problemas – está envolto por espinhos e a tarefa de o retirar à planta deixa lanhos nos dedos. Toda a beleza da voz e da guitarra de Julie Byrne, o tesouro escondido em Not Even Happiness, os coros esparsos, as melodias em ascensão, nada disto vinha desprovido de feridas, de tristeza, de nos colocar num lugar de vulnerabilidade em que somos rodeados pelo passado (as palavras de que nos arrependemos, os divórcios, os amigos perdidos, as ressacas) e saímos de gatas, humildes perante a colossal estupidez com que guiámos a nossa vida e pelo colosso de encantamento que acabou de nos abalroar.
Dez anos é muito tempo, dizia uma antiga cantiga portuguesa – mas seis também e porque raio demorou Byrne seis anos a lançar o segundo disco só ela saberá. Talvez o seu tempo seja diferente do tempo do resto dos humanos, da caixa registadora capitalista. Talvez ela precise de viver e observar e falhar e ruminar nos seus erros ou dos outros – porque (e este é o extraordinário poder das suas canções) pode até parecer-nos que ela está a cantar sobre as nossas vidas mas não está, ela não nos conhece, dá-se apenas o acaso cósmico de Julie observar o mundo de um ângulo que capta misérias universais.
O tempo não é despiciendo na música de Julie Byrne – é, depois da sua voz, e ao lado dos arranjos, um elemento crucial no milagre que esta música opera. Não me refiro a tempo no sentido da duração das músicas ou na frequência com que os seus dedos percutem as cordas da guitarra ou com que ela deposita cada sílaba no contorno das melodias. Os discos de Julie Byrne possuem aquela qualidade etérea de discos como From Gardens Where We Feel Secure, de Virginia Astley, não são – apesar da guitarra acústica – propriamente exemplos de folk, não lhes atribuímos qualquer característica rural.
Not Even Happiness terminava com “I live now as a singer”, sintetizadores esparsos em órbita lá em cima, a voz de anjo num gospel vindo do além – e a vida parava, e se fosse escolha minha a canção nunca acabaria, eu nunca mais teria de preencher uma declaração de IRS, não teria mais horários, obrigações, ansiedade, ficaria apenas deitado na pauta, seria uma micro-pausa onde a garganta de Byrne descansaria por milésimos, antes de avançar dois tons, a subir, rumo ao que não pode ser explicado.
Nada muda com o novo The Greater Wings: é a mesma voz, a mesma guitarra, os mesmos sintetizadores, os mesmos arranjos de cordas, a mesma tristeza – quando muito poderíamos dizer que o quarto tema, “Summer glass”, com o seus synths ligeiramente mais agitados podia ser, noutras mãos, um êxito lounge de verão, se por acaso alguma vez ocorresse a Byrne dançar, colocar uma batida; mas a canção não quer ir a lado algum, apenas ficar aqui e ficar aqui é o tema, o cerne, o princípio e o fim do disco.
[o vídeo de “Summer Glass”:]
Porque The Greater Wings já não é um disco sobre o homem que se foi embora, ou os pecados que cometemos ou a solidão que sentimos – é um disco sobre a perda, sobre alguém não vai voltar mais, sobre andarmos pela Terra como amputados mesmo que uma breve vistoria indique que mantemos todos os órgãos. (Quem mais pararia uma faixa eletrónica, no exato instante em que ela podia subir apenas para podermos ouvir um arranjo de cordas celestial ascender e depois desaparecer como poeira? Não é caso único: em “Summer’s end” a canção pára e resta apenas uma harpa. Harpas e pianos ampliam o espectro sonoro que conhecíamos de Not Even Happiness, mas ontologicamente é a mesma música, apenas ainda mais ferida, menos esperançosa.)
A meio da gravação de The Greater Wings, Eric Littmann, que tocou sintetizador e produziu o disco de estreia de Julie, morreu; Littman tinha apenas 31 anos e fosse qual fosse a natureza da relação entre os dois, parece óbvio ter tido um papel essencial na definição do som etéreo que Byrne esculpe com tamanha precisão.
As canções de The Greater Wings já estavam compostas, mas é quase impossível ouvi-las agora e não escutar uma elegia pelo amigo perdido – a morte está por todo o lado aqui, a memória como uma espécie de boia a que o náufrago se agarra, agora que perdeu o seu barco, o seu chão. Que fazer quando perdemos quem amamos? A nós, os desafinados, pouco resta além de recordar o bom que vivemos; Byrne entrega-se a uma procissão de recordação e arrependimento: em “Flare”, enquanto as cordas sobem e descem, ela canta “I could have done better” e isto dá um bocado cabo do coração.
Há uns anos, numa das raras entrevistas que deu, Byrne confessou andar à procura de paz neste mundo confuso e caótico; agora encontra a marca de um dedo num copo e sabemos que o dedo era de Littmann: ela está a reconstruir o que perdeu através das pequenas memórias que tem força para conjurar; e as memórias, transformadas em melodias, arranjadas com cordas, harpa e piano (como em “Moonless”) parecem desobedecer às leis da física e quanto mais incorpóreas maior a gravitas que sentimos.
Mas à medida que o reouvimos, The Greater Wings altera-se: sim, começa onde Not Even Happiness acabava – nos sintetizadores a atirarem as canções para o reino das coisas imateriais – mas, escuta a escuta, notamos que, lentamente, The Greater Wings vai descendo à terra: há um charro aceso, o copo, a pele de um corpo e as memórias têm peso, as palavras têm peso. Viver num copo não parece grande ideia – viver em “Summer glass” é partilhar da mais absoluta beleza, da extraordinária dádiva que é sabermos que alguém sente saudades de quem amou.
Caetano Veloso disse um dia a mais bela frase sobre mestre João Gilberto: “Melhor que silêncio só João”. Ele não se importará que o plagie, com uma ligeira alteração: “Melhor que silêncio só Julie”.