Há 500 milhões de anos, o planeta ainda estava longe de conhecer os dinossauros, muito menos os seres humanos. Existiam espécies ancestrais, entretanto extintas ou que evoluíram para outras formas, como o tiktaalik, um peixe de quatro patas, antepassado dos anfíbios.

E existia a lampreia. A espécie não só sobreviveu a todas as catástrofes, meteoritos, transformações ambientais e transições de eras, como pouco mudou ao longo do processo. Pode até ser mais conhecida como uma iguaria da gastronomia portuguesa, mas, na verdade, a lampreia-marinha é uma sobrevivente épica. “É um autêntico fóssil vivo, de enorme resiliência, que até sobreviveu à extinção dos dinossauros”, diz Catarina Mateus, investigadora do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, da Universidade de Évora.

As lampreias têm um ciclo de vida de cerca de sete anos. Não são de grande longevidade, mas têm uma existência cheia de mutações, dramas e desafios. Nascem nos rios, em ninhos formados por pedras e areia. “Passam os primeiros cinco anos em fase larvar, escondidas no substrato arenoso, e nessa fase ainda não têm olhos nem o seu icónico disco oral, que é o que lhes permite alimentarem-se enquanto adultas”, diz a investigadora. “Depois, dá-se uma metamorfose para juvenil, com a formação dos olhos, do disco oral e uma coloração prateada a substituir os tons amarelados da larva. A lampreia fica então pronta para a sua migração para jusante (à procura de comida)”.

Para completar o ciclo de vida, a lampreia precisa de ir para o mar. Desce o rio até ao estuário e perde-se depois na imensidão do oceano. “Temos pouca informação sobre a sua vida marinha, porque é mais difícil fazer a monitorização no mar do que nos rios”, diz a cientista. Alimentam-se parasiticamente, ou seja, agarram-se a hóspedes, normalmente grandes peixes como o sável, o atum ou o golfinho, sugando o seu sangue e os tecidos corporais – e por isso são conhecidas como “vampiros do mar”.

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Quando atingem a idade adulta, após um ou dois anos no oceano, param de se alimentar e migram a montante dos rios, escolhendo o melhor terreno para os ninhos. Depois da desova, morrem. “Quando abrimos uma lampreia que está na fase final da migração, só vemos gónadas [os órgãos onde se produzem as células sexuais] no corpo todo, o que mostra que os outros órgãos vão regredindo e deteriorando-se para permitir a capacidade reprodutora”, diz a investigadora. “Toda a sua energia é investida na migração e na reprodução”.

É nas transições dos rios para o mar, e vice-versa, que a espécie enfrenta as maiores ameaças: as barragens e pequenos açudes que obstruem a passagem nos rios. Muitas ficam presas e acabam por morrer. Uma das tarefas de Catarina Mateus e da sua equipa é identificar obstáculos à continuidade fluvial e criar “corredores” artificiais para a mobilidade das lampreias. A poluição, a sobrepesca e pesca ilegal são outros fatores de risco. “Os pescadores com quem falamos queixam-se de atividades furtivas e ilegais na captura da lampreia-marinha”, diz Catarina Mateus, recordando que o animal é muito apreciado em receitas tradicionais, como o arroz de lampreia.

Uma realidade contrastante com a existente, por exemplo, nos Grandes Lagos dos EUA, em que a lampreia é classificada como espécie invasora. Em Portugal, essa abundância está longe de ocorrer. Não apenas devido à vulnerabilidade da conservação da lampreia-marinha, mas também porque a outra espécie anádroma (que se reproduz em água doce mas se desenvolve até a forma adulta no mar,) de lampreia das nossas águas, a lampreia-de-rio (Lampetra fluviatilis), já está extinta em Espanha e encontra-se criticamente ameaçada em Portugal.

“Há quatro anos que não recolhemos uma e estimamos que não existam mais do que mil efetivos”, diz Catarina Mateus. Significativamente mais pequena (20 a 49 centímetros e até 80 gramas), a lampreia-de-rio ocorre exclusivamente no rio Tejo, reproduz-se mais a montante no curso de água e arrisca muito menos a sair do estuário para se alimentar no mar.

Apesar de terem sobrevivido a toda a espécie de hecatombes ecológicas, as lampreias não são eternas. Por isso, os especialistas têm desenvolvido esforços com vista à reabilitação de habitats nas bacias fluviais. E não só. Catarina Mateus diz que a Universidade de Évora vai este ano iniciar a coordenação de um programa europeu (DiadSea) que irá cartografar a distribuição das lampreias no mar e identificar áreas importantes para esta espécie, além de criar um observatório transnacional para esta classe de peixes. Quinhentos milhões de anos depois, vamos provavelmente ficar a saber mais sobre a vida da lampreia em alto mar.

Nome comum: Lampreia-marinha
Nome científico: Petromyzon marinus
Classe: Petromyzontida
Estatuto de conservação: Vulnerável
Distribuição em Portugal: Todas as águas continentais, com predominância no Norte, nas bacias dos rios Minho, Lima, Cávado, Vouga e Mondego
Principais ameaças: Obstrução do leito dos rios com barragens ou pequenos açudes, poluição e pesca furtiva
Dimensões médias: De 60 a 90 centímetros, podendo chegar a 1,20m. Atinge os seis centímetros de espessura e pode pesar até dois quilos.

Este é o sétimo de dez artigos sobre espécies marinhas ameaçadas que ocorrem em Portugal. Na semana passada escrevemos sobre o habitante invulgar da Ria Formosa. E antes disso sobre a maldição da barbatana do tubarão-martelo liso, a joia do lusco-fusco submarino, o golfinho tímido que está a viver um drama, o intrigante réptil turista das águas portuguesas e a ave marinha mais ameaçada da Europa. No próximo sábado apresentaremos outra.