O PSD vai apresentar em setembro a sua proposta para reduzir as taxas marginais do IRS, com efeitos já sentidos pelos contribuintes este ano, mas cujos contornos exatos ainda não foram divulgados. Os juristas  ouvidos pelo Observador consideram que, em abstracto, qualquer iniciativa para alterar a despesa e a receita face ao que está no Orçamento do Estado vai contra a norma travão da Constituição. Isto no caso da iniciativa legislativa partir de qualquer entidade — partido ou cidadão — que não seja o Governo.

A reforma do IRS proposta pelos social-democratas para produzir resultados já este ano “choca” com a Constituição, defende Maria d’Oliveira Martins, embora fazendo a ressalva de que não conhece os detalhes da proposta legislativa. Isto porque, diz a jurista, “os partidos ou os cidadãos não podem apresentar propostas de lei que alterem a receita ou a despesa prevista no Orçamento original”. O que está em causa no famoso artigo 167 da Constituição é uma “inibição da iniciativa legislativa em matéria de despesa e receitas orçamentais que se aplica a todos menos ao Governo” que é quem está a executar o Orçamento do Estado. E esta inibição, acrescenta, é independente da existência de eventuais medidas de compensação que possam assegurar a neutralidade orçamental da medida.

A jurista, especialista em finanças públicas, remete para um acórdão de 2021 do Tribunal Constitucional que reforçou essa leitura formal da norma travão ao propósito de alterações aprovadas pelo Parlamento que iam mais longe do que as medidas propostas pelo Governo no apoio às famílias no contexto da pandemia. A declaração de inconstitucionalidade neste caso, suscitou um comentário crítico por parte de Maria d’Oliveira Martins, por considerar que o “Tribunal Constitucional contrariou o sentido histórico das «leis e normas travão» que foram sendo gizadas ao impor um regime de nulidade que vai muito para além daquilo que é a contenção temporária ao direito de iniciativa parlamentar que as mesmas impõem”.

Mesmo que o PS votasse a favor da proposta de redução do IRS ainda em 2023 apresentada PSD, esta seria inconstitucional, a não ser que fosse o Governo a apresentá-la.

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O constitucionalista Paulo Otero também considera que a norma travão prevê que não seja possível aprovar uma diminuição de receitas ou aumento de despesa, face ao Orçamento do Estado do ano, sem ser por iniciativa do próprio Governo. “Há uma reserva constitucional de iniciativa legislativa em matéria orçamental. Independentemente de existir compensação pelo lado da receita”. O jurista admite contudo que este obstáculo possa ser ultrapassado, desde que haja uma iniciativa da parte do Governo. Se o parlamento aprovar — o que na atual composição exigiria o voto favorável dos socialistas — a única hipótese de não ser contrário à Constituição seria determinar que essa norma passaria a ser uma lei em 2024 que o Governo teria incorporar quando em outubro apresentar a proposta orçamental para o próximo ano.

Para ser aprovada este ano e não ser inconstitucional teria de produzir efeitos no ano económico de 2024 e com o compromisso do Governo.

PSD diz que “receita prevista” no OE dá margem para baixar IRS sem por em causa Constituição

Mas o objetivo dos social-democratas é que a baixa generalizada das taxas do imposto produza efeitos já em 2023 porque é neste ano que existe margem orçamental, por via da receita fiscal acrescida, para financiar a medida que terá um custo estimado de 1.200 milhões de euros anualizado. “A medida seria integralmente financiada com devolução de parte do excesso da receita fiscal cobrada pelo Estado em 2023, face ao previsto no Orçamento do Estado”. E de acordo com o vice-presidente do PSD, António Leitão Amaro, a referência explícita à receita prevista faz a diferença na avaliação da constitucionalidade da proposta. Isto porque, explicou ao Observador, a norma travão impede alterações de receita e despesa anuais face aos valores previstos no OE.

N.º2 do Artigo 167 da Constituição portuguesa.

“Os deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”.

Ora, as contas à descida das taxas marginais de oito escalões do IRS (apenas a taxa de 48% se mantém) entre os 10,3% e os 0,6% está calibrada para não por em causa a receita prevista para este imposto na proposta de Orçamento do Estado deste ano. O que, sublinha António Leitão Amaro, não contraria a norma travão. As estimativas feitas pelo partido, a partir dos dados da execução orçamental até junho, apontam para que a receita do IRS cresça este ano entre 1.300 milhões de euros e 1.800 milhões de euros — a cobrança deste imposto estava a subir 14,8% até junho e no OE 2023 estava previsto um crescimento muito menor. Logo, o corte proposto pelo PSD num valor estimado de 1.200 milhões de euros cabe nesta margem, sem por em causa a receita prevista no OE para este imposto.

Nos cálculos do partido, a receita fiscal em excesso cobrada pelo Estado face ao previsto para 2023 — a qual é muito explicada pela subida dos preços e pela arrecadação de IVA — vai situar-se entre os 2.100 e os 2.500 milhões de euros. O “excesso só de receita de IRS estima-se entre 1.300 milhões de euros e 1.800 milhões de euros. Com responsabilidade orçamental, devolve-se cerca de metade do excesso e cumpre-se a lei travão”, refere o sumário executivo da proposta explicada pelo partido esta quarta-feira.

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Apesar do impacto financeiro de 1.200 milhões de euros ser calculado para o rendimento de todo 2023, o PSD quer que o benefício fiscal chegue a todos os contribuintes já este ano, o que implicará voltar a mexer nas tabelas de retenção aplicadas nos próximos três meses, podendo mesmo, em alguns rendimentos, este bónus fiscal resultar na inexistência de qualquer retenção na fonte até ao final de 2023. A redução de taxas defendida é estrutural e mantém-se para 2024, mas aí já não está em causa a norma travão.