Uma sombra paira sobre a espuma das ondas enquanto a águia-pesqueira inspeciona a presença de peixe no oceano, em voo deslizado, para cá e para lá, a uma altura de 30 metros. Os seus olhos amarelos detetam então a presa e as suas asas batem sem que saia do mesmo sítio, num voo peneirado pouco comum em espécies de rapina. Subitamente, dispara num voo picado, patas para a frente, agarrando firmemente o peixe desprevenido – seja ele uma tainha, uma carpa ou um robalo – e levando-o para um local ermo onde o possa comer em segurança. Este é o movimento icónico da águia-pesqueira: “É a única ave de rapina que se alimenta quase exclusivamente de peixe”, diz ao Observador Luís Palma, 71 anos, investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO-inBIO), da Universidade do Porto. “Comem todo o tipo de peixe que consigam capturar, especialmente os que nadam à superfície, embora consigam mergulhar rapidamente até aos 70cm de profundidade”

Atualmente, podem encontrar-se águias-pesqueiras de passagem pelos estuários, falésias ou lagoas portuguesas, em migração a partir do centro e do norte da Europa até à Península Ibérica ou mesmo mais além, até à costa ocidental africana. Outras passam cá o inverno, o período não reprodutor. Estão especialmente nos estuários dos rios Tejo e Sado, na Ria de Aveiro ou na Lagoa de Santo André, no Alentejo, mas podem também ser vistos em qualquer zona húmida do litoral português. “Estacionam ou passam no país durante o período não-reprodutor e quando os rios e os lagos do norte da Europa estão congelados, encontrando a sul mais acesso às presas”, diz Palma.

Para além destas, havia em Portugal relativa abundância de populações residentes, que faziam ninhos e se reproduziam por cá. Contudo, a partir do início do século XX, as suas vidas tornaram-se muito mais difíceis. “Em 1938, foi criada uma legislação popularmente conhecida como ‘campanha dos nocivos’, que promovia o abate e destruição dos animais predadores. Esta espécie era a mais vulnerável entre as aves de rapina, pois o centro do seu território era a costa, muito mais acessível do que as regiões remotas do interior, e mais visível, pois protesta contra a presença humana junto aos seus ninhos”, explica o investigador.

“Houve uma grande mortandade. Esta espécie foi uma das listadas em maior número nos primeiros anos nos registos do pagamento de remunerações pelo abate de predadores. Há registos de entregas às autoridades de patas, bicos e cabeças, e havia uma compensação económica às pessoas que as eliminavam”, continua. Para além da matança, apareceram no mesmo período as estâncias de veraneio, pequenos aglomerados populacionais que foram crescendo nas praias em que as águias-pesqueiras eram donas e senhoras, como Santa Cruz, Praia de Odeceixe e Monte Clérigo. Em 1997, a última fêmea nativa morreu. Em Portugal, tal como em Espanha, deixaram de se ver ninhos desta ave mergulhadora. “O macho chegou a acasalar com fêmeas que não eram da população nativa, mas não teve sucesso reprodutor”, diz Palma. “A nossa população reprodutora estava extinta”.

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Embora o estatuto de conservação a nível global seja pouco preocupante – a águia-pesqueira ocorre em todos os continentes à exceção da Antártida -, a ausência de uma população reprodutora em Portugal foi uma enorme perda. A partir de 2011, Luís Palma e outros investigadores encetaram um projeto de reintrodução, destinado a restaurar uma população reprodutora em todo o país. O sítio escolhido foi a albufeira do Alqueva. “Optámos por esse local por ser mais tranquilo e devido à elevada contaminação dos estuários e perturbação das rias e de outras áreas do litoral”, diz Palma. “O processo de reintrodução no Alqueva correu bem, isto é, a importação, manutenção e libertação dos 56 juvenis transportados da Suécia e da Finlândia para Portugal. Porém, poucos indivíduos reintroduzidos tentaram nidificar no nosso país enquanto adultos e a outros perdemos-lhes o rasto”. Três casais subsistem desta reintrodução, dois na albufeira do Alqueva.

Ali, a águia-pesqueira enfrenta a competição das cegonhas pelos ninhos, não raras vezes ocupados por aquela ave mais precoce e parcialmente sedentária. O investigador acredita que o país é propício à reinstalação da águia-pesqueira, dada a abundância de alimento nas rias, no mar e até em albufeiras interiores, bem como nas zonas de costa com falésias altas, onde o cientista acredita existir um elevado potencial de habitat.

Os casais têm uma dinâmica harmoniosa: são monogâmicos em relações sazonais, participando ambos os progenitores na alimentação das crias, com o macho à procura de peixe e a fêmea a cuidar e a alimentar os pequenos. Foram uma presença constante nas memórias marítimas de um povo de marinheiros e pescadores. Chamavam-lhe guincho, e era tão comum no litoral que até deu nome a uma praia, na zona de Cascais. “Há uma razão para lhe terem chamado guincho. Do ponto de vista filogenético, não se trata de uma águia”, afirma Luís Palma. “Isso mudou devido a um erro de catalogação de um museu de Coimbra, no século XIX. Ainda assim, o seu nome histórico persistiu através dos colonizadores que trabalharam na produção de cana-de-açúcar, sendo ainda chamada de ‘guincho’ na Madeira, nas Canárias, em Cabo Verde, em Cuba ou na República Dominicana. Eu próprio ainda lhe chamo guincho”.

Nome comum: Águia-pesqueira
Nome científico: Pandion haliaetus
Classe: Aves
Estatuto de conservação: Pouco preocupante a nível global. Em Portugal, as aves nativas foram consideradas extintas em 1997 e reintroduzidas entre 2011 e 2015. Há atualmente três casais, dois dos quais reprodutores.
Distribuição em Portugal: As aves migradoras e invernantes encontram-se de norte a sul de Portugal Continental, especialmente nos estuários do Tejo e do Sado, na Ria de Aveiro ou na Ria Formosa. Os casais reintroduzidos encontram-se no Alqueva.
Principais ameaças: Perturbação humana no litoral, perturbação associada à pesca, morte acidental, abate ilegal, perturbação e degradação dos locais de nidificação, diminuição dos recursos alimentares e poluição da água.
Dimensões: Tem entre 50 e 60cm de comprimento e 1,50m a 1,67m de envergadura. Pesa cerca de 1,4kg.

Este é o nono de dez artigos sobre espécies marinhas ameaçadas que ocorrem em Portugal. Na semana passada escrevemos sobre a foca mais rara do mundo. E antes disso sobre 0 vampiro dos mares que sobreviveu à extinção dos dinossauros, o habitante invulgar da Ria Formosa, a maldição da barbatana do tubarão-martelo liso, a joia do lusco-fusco submarino, o golfinho tímido que está a viver um drama, o intrigante réptil turista das águas portuguesas e a ave marinha mais ameaçada da Europa. No próximo sábado apresentaremos a última.